terça-feira, 1 de novembro de 2016

PALÍNDROMO

Não ia começar assim, não ia começar desta maneira, não ia começar por dizer,
– não sei porque vou fazer isto. Não sei porque vou fazer isto outra vez, não quero fazer isto outra vez,
não era nada disto, não era assim. Ia começar de outra maneira. Ia começar comigo a dizer,
– não choveu o dia todo, mas tive essa sensação, de que choveu o dia todo, enquanto deitado no sofá olhava intermitente para o tecto, para a televisão, para o tapete, para o cinzeiro, para a tua fotografia na parede
(sim, entretanto há uma fotografia tua na parede)
para mim que continuava deitado no sofá e para o telefone que não parou de tocar com mensagens e e-mails e telefonemas e eu sem ver nenhum deles, eu intermitente entre o sofá e a varanda, entre a rua e o chão, o asfalto e o tapete, eu a olhar para o céu e a achar que parece que está a chover mesmo que não haja uma única nuvem e nem sequer uma gota de água que me caia no pescoço quando venho cá fora fumar um cigarro.
E depois, agora, ao fim do dia, enquanto olho para a parede à minha direita, onde o tempo se continua a acumular, onde o tempo não pára de crescer em post-its cor-de-rosa que marcam um, dois, três dias, etc, penso aqui sentado que talvez os dias e meses apenas se transformem em mais dias e mais meses, etc, que por muito tempo que passe, por muito que aconteça, vou sempre ficar aqui, parado, no fim da noite, a olhar para o tempo a passar enquanto as pessoas me telefonam e mandam mensagens a dizer coisas como,
– o que é feito de ti?
ou
– fodia-te agora.
Ela diz-me que esta história, esta história de amor, só resulta porque acaba mal, porque é incompleta. Ela diz que só é uma história de amor porque acabou mal, e por muito que eu diga que não é bem assim, que a história ainda não acabou, que eu acho que ainda não acabou, a verdade é que,
a verdade é que eu paro,
e paro mesmo. Paro e pergunto-me,
– o que é que estás a fazer?,
porque ultimamente parece que tudo converge para essa pergunta, para o que é que eu estou a fazer, parece que nada funciona e, ao mesmo tempo, nada funciona realmente: o computador, a televisão, a máquina de café, a minha cabeça.
[E depois eu disse, eu disse assim,
– não quero saber, não quero mesmo saber, faz o que tens a fazer, se é isso que achas que deves fazer
(e depois cortei umas coisas que tinha escrito porque achei que era demais, achei que as pessoas iam perceber o que eu queria dizer, e eu não quero que as pessoas percebam o que estou a dizer)
mesmo que seja isso que eu queira gritar quando saio à rua nas poucas vezes que saio à rua, nas poucas vezes em que vejo a luz do Sol ou a luz da Lua ou o brilho do dia ou o brilho da noite, ou
e depois ela disse,
– cala-te,
e eu calei-me.
Sim. Às vezes é isso que penso, quando à noite me deito e encosto a cabeça na almofada,
– que estúpido sou,
penso eu quando encosto a cabeça na almofada.]
Digamos que é estranho pensar em mim, digamos que é estranho pensar nas pessoas que me são próximas. A minha sobrinha, por exemplo, fez 19 anos na semana passada, talvez há mais tempo, não sei, mas seja há uma ou duas semanas, não interessa, é estranho ter uma sobrinha que tem 19 anos.
Houve uma festa. Disse a meio do almoço,
– é estranho teres 19 anos, lembro-me de ti quando nasceste, cabias nos meus braços, de olhos fechados porque estavas sempre de olhos fechados, e por isso é estranho olhar para ti e teres 19 anos e já não caberes nos meus braços e teres crescido e seres uma mulher e teres os olhos abertos. Que estranho, que estranho que tudo isto é. Ainda ontem fui para a cama com uma miúda da tua idade e, percebes?, há qualquer coisa de errado nisso, qualquer coisa, qualquer coisa de errado em mim.
E a minha sobrinha a olhar para mim, e toda a gente a olhar para mim, e eu calado a olhar para toda a gente.
E toda a gente se cala. E é estranho toda a gente se calar, ou talvez seja apenas aquele momento em que toda a gente se cala, aquele momento em que todas as vozes se deixam de ouvir, em que apenas se ouve um,
– Mike?,
da minha irmã enquanto olha para mim com os olhos abertos, como se perguntasse,
– estás parvo?,
porque há pessoas mais velhas ao nosso lado, pessoas mais velhas que felizmente dizem,
– hã?
quando alguém lhes diz alguma coisa ou quando eu digo o que costumo dizer
essas coisas desagradáveis
essas coisas
coisas

Então.

Então desta vez eu estava a pensar, eu estava a pensar assim, desta vez eu estava a pensar assim,
– quando eu era novo,
e deve ser isso, deve ser apenas isso, deve ser apenas a consciência desse,
– quando eu era novo,
uma coisa algures lá atrás, um tempo distante, eu sem este ar acabado, eu sem este aspecto de quem acabou de cair das escadas abaixo, eu sem marcar o tempo na parede, sem hesitar antes de fazer, sem pensar em ti, eu a deixar de pensar em ti, eu a encontrar uma maneira de nunca mais pensar em ti, nem agora nem depois, eu, apenas eu a dizer,
 and therein, as the Bard tell us, lies the rub. 

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