quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

STRAIGHT TO YOU

E daqui a cinco dias, no Porto, mais ou menos por esta hora, vou olhar para o céu e vou dizer à Jani e ao David,
– já não sinto nada, já passou tudo, está tudo bem, nem sequer vou voltar a falar do assunto. Claro que vou voltar a falar sobre o assunto, mas vai ser diferente, já é diferente, como se tudo fosse no passado, como se tudo fosse um dia, algures, lá atrás, mesmo que tenha passado pouco tempo, mesmo que tenha passado pouco tempo vai parecer que foi tudo há muitos anos, e que nem sequer me lembro bem de como tudo aconteceu, de como as coisas começaram e de como tudo acabou.
Isto vai ser daqui a cinco dias, no Porto, longe daqui e longe de ti, muito longe de ti.
Vamos para o Porto outra vez, eu, a Jani e o David vamos para o Porto outra vez, e passou-se quase um ano desde que quase perdemos um comboio que nos ias levar para o Porto. E a nossa vida, a vida dos três, está muito diferente quase um ano depois, mas vamos voltar para lá, para fazer a mesma coisa que fizemos há quase um ano, vamos ao Porto para eu morrer.
Não comecei bem. Vou começar outra vez.
Vamos para o Porto e eles têm ensaiado em minha casa, a Jani e o David têm ensaiado em minha casa, eu deixo-lhes a chave de casa e vou dar aulas enquanto eles ensaiam em minha casa porque daqui a cinco dias vamos para o Porto onde vamos voltar a fazer o Minotauro. Eu não estou nos ensaios porque tenho de estar nas aulas, tenho um horário de merda e por isso tenho de estar nas aulas e não nos ensaios, e quando volto para casa no fim das aulas bato à porta de minha casa e ouço a Jani a dizer,
– quem é?,
e eu digo,
– sou eu,
mesmo que não saiba o que isso quer dizer.
– O que se passa contigo? Estás diferente, até a tua casa está diferente, olho para ti e estás diferente, olho para as paredes e estão diferentes, o que aconteceu?,
pergunta a Jani,
isto foi há quatro dias. O ensaio já tinha acabado e o David já se tinha ido embora, a Jani tinha ficado porque lhe apeteceu ficar e voltou a dizer,
– o que aconteceu?,
ela percebe estas coisas, não sei como, mas percebe-as. Ao jantar, depois de falarmos sobre ela, voltou a perguntar,
– o que aconteceu?,
e eu disse que há certas coisas que quando são feitas não podem ser desfeitas, eu disse assim,
– sabes, há certas coisas que quando são feitas não podem ser desfeitas, certas coisas que as pessoas fazem, e eu estou farto, farto de sofrer, farto de dar sem receber, eu acho que sou uma pessoa boa, eu acho que está na altura de ir para qualquer lado e começar tudo do zero outra vez, e pode ser no Porto ou noutro lado qualquer, pode ser em qualquer lado desde que seja longe dela,
– tu és uma pessoa boa, Mike,
diz a Jani,
– tem calma.                                                          
Isto foi há quatro dias.
Tem sido uma semana difícil. Quase não dormi, há cinco dias que quase não durmo, duas ou três horas no sofá, durmo duas ou três horas no sofá, às vezes menos, e depois vou dar aulas.
A seguir encontrei-te e foi bom encontrar-te, foi tão bom encontrar-te. Ficamos sempre a recordar o que aconteceu e o que podíamos ter sido. E, não sei, quando estou ali contigo parece que há uma maneira qualquer de o tempo voltar para trás e de as coisas serem diferentes. Mas não são, as coisas não são diferentes e continuam na mesma.
Isto foi há três dias.
Eu não te via há não sei quanto tempo, quase um ano ou mais de um ano e foi estranho encontrar-te nesta altura, foi estranho reencontrar um amor antigo na mesma altura em que estou a largar um amor recente. Foi estranho, mas foi bom. Há dez anos estive quase para apanhar um avião para Santorini para ir ter contigo, na altura estavas a passar férias com os teus pais, e eu pensei,
– vou apanhar um avião para Santorini e vou ter com ela, não sei onde ela está mas vou encontrá-la e quando a encontrar vou ajoelhar-me aos pés dela e dizer,
– estou aqui, sou eu, sei que tenho muitos defeitos, sei que não sou o melhor dos homens, mas amo-te como ninguém te há-de amar e a única coisa que quero na vida é fazer-te feliz, e é isso que vou fazer porque é a única coisa que sei fazer.
Mas eu não fui para Santorini. Fiquei em Lisboa. Fiquei em Lisboa a pensar no que poderia acontecer se apanhasse um avião para Santorini. E agora, há três dias, estamos a falar disso. Ela ri-se. Ela diz-me que está a pensar em casar com o namorado que já era namorado na altura de Santorini. Eu pergunto-lhe o que teria acontecido se eu tivesse ido ter com ela a Santorini. Ela ri-se outra vez. Ela pega na minha mão e diz que eu devia ter ido ter com ela a Santorini, e eu pergunto-lhe a mesma pergunta de sempre nestes últimos dez anos,
– como é que não ficámos juntos?,
e depois rimo-nos e eu digo que vou aparecer no casamento dela, que quando o padre disser,
– se alguém tem alguma coisa a dizer,
eu vou aparecer e vou gritar,
– Santorini,
mesmo sabendo, os dois, que não vou fazer isso.
Sim, meu amor, há coisas que quando são feitas não podem ser desfeitas, e há outras que não podem ser feitas quando foram desfeitas, e, por isso, adeus. Passaram cinco dias e já deves ter notado a diferença, que eu estou noutro lado, que te tirei de dentro de mim. Já não estou aqui, estou no Porto, a olhar para o céu e dizer à Jani e ao David,
– não sei o que hei-de fazer,
não,
não é isso,
não é nada disso.
Isto foi há cinco dias,
eu estava a morrer e o Pedro estava comigo, eu morto nos braços dele enquanto eu dizia,
– não sei o que hei-de fazer,
e depois ele disse,
– sabes, sim,
e depois ele largou-me e disse,
– sabes, sim.
E depois ele foi-se embora. E depois de ele se ir embora e eu ficar sozinho pensei no que havia de fazer. E percebi que só tinha uma coisa a fazer. E fui até à parede e comecei a tirar o tempo da parede. Não o arranquei nem o atirei violento contra o chão. Não. Apenas o tirei da parede. Apenas peguei nele e o tirei da parede. E enquanto tirava o tempo da parede pensava que, afinal, não tinha perdido grande coisa,
– apenas tempo,
pensei eu,
– e amor próprio e, às vezes, talvez alguma dignidade,
pensei eu,
– não é assim tanta coisa,
pensei eu,
– podia ter perdido muito mais.                                           

sábado, 18 de fevereiro de 2017

APAGAR O CÉU

Talvez não seja coincidência que tenha começado a perder a fé quando estou a ler os evangelhos. Não estou a falar de há muitos anos, na catequese, quando me ensinavam que o meu melhor amigo era Jesus e que a minha melhor amiga era Maria, não estou a falar disso, nem sequer sei quem são os meus melhores amigos, nem percebo essa expressão, melhor amigo ou melhor amiga, como se houvesse uns amigos melhores do que outros, como se disséssemos,
– sabes, eu sei que és um bom amigo, que te preocupas comigo quando eu estou na merda, que me telefonas uma vez por semana a perguntar, então, estás bem?, porque te preocupas realmente comigo, como naquele dia em que me emprestaste dinheiro para eu pagar a conta da luz e o aluguer da casa porque senão ficava às escuras em casa, ou, pior ainda, ficava sem casa e às escuras, e sei que não te devolvi o dinheiro e que nem sequer te agradeci, mas sabes que eu sou assim, não digo nada, não agradeço nada, apenas me deixo ir, como daquela vez em que me levaste às costas para casa porque eu estava tão bêbado que nem de gatas me conseguia arrastar na rua, tu a dizeres que eu tinha de ao menos fazer pouco barulho e eu a uivar estrada acima enquanto gritava o nome dela porque achava que ia morrer de amor.
– Morrer de amor,
diz ela,
– já ninguém morre de amor,
diz ela,
– que merda,
diz ela,
– que merda que já ninguém morra de amor,
enquanto olha para mim e diz,
– não percebo como é que ainda não caíste para o lado, a sério que não percebo, já devias ter caído para o lado há muito tempo, já devias estar estendido no chão, quieto, imóvel, com o coração parado porque ninguém aguenta tanta coisa sem morrer, ninguém sobrevive a essa intensidade que pões
(eu interrompo-a).
– Sim, eu sei disso tudo,
e depois calei-me e olhei em frente. Ela disse,
– vai falar com ela, estás a olhar em frente para quê?, não olhes para a frente, olha para trás, pára de torturar o guardanapo, pára de dizer,
– outro,
e de olhar em frente para a televisão, estás a ver o quê?, o que te interessa um jogo de futebol entre duas equipas argentinas às duas da manhã?, pára de
(eu interrompo-a outra vez).
Tenho a minha mão suspensa no ar e olho para ela. Eu digo,
– acho que não aguento mais, acho que não consigo mesmo aguentar mais. Até o meu corpo começa a rejeitar-me. Estou cansado. Estou demasiado cansado. Não consigo comer, não consigo dormir, e estou assim há dois anos. Há dois anos sem comer e há dois anos sem dormir. Vou levantar-me, vou vestir o casaco e quando chegar lá fora vou apagar o céu, é isso que vou fazer, apagar o céu como se ele não existisse, como se ele nunca tivesse existido.
– Apagar o céu,
disse ela,
– o que é que isso quer dizer?,
perguntou ela.
Estava a dizer que talvez não fosse coincidência que eu tenha começado a perder a fé agora que estou a ler os evangelhos. Estou, portanto, a falar de agora e não de há muitos anos na catequese. Não é como quando eu tinha uns cinco anos, quando me deram um rosário para a mão e me disseram,
– reza,
e eu olhei para os meus colegas da primária, todos ajoelhados com as mãos juntas e a cabeça baixa enquanto eu pensava,
– não faço parte disto, não tenho nada a ver com isto, nem sequer sei o que é isto, apenas estou a perder a fé na única coisa em que acredito,
disse eu.
– E isso quer dizer o quê?,
perguntas tu.
E eu paro. Estamos cá fora. Está frio. Eu aperto o casaco e olho para cima, olho para o céu. E depois eu apago céu. E depois eu digo,
– apaguei o céu,
e tu dizes,
– não, não faças isso.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

PALIMPSESTO

Tenho pensado em ti. Tenho sempre pensado em ti. Se estou a falar não estou a falar, se me estou a rir não me estou a rir, se estou sentado num banco de jardim a olhar para um casal que passeia de mãos dadas, não estou sentado num banco de jardim a olhar para um casal que passeia de mãos dadas, estou a pensar em ti.
Acho que começou outra vez, os dias a passar e eu sem saber o que fazer com eles, os dias cada vez mais longos e eu a olhar para eles como se fossem coisas que se repetem, cópias de cópias, apenas um acordar e um adormecer, e coisas que acontecem nesse intervalo e que me distraem,
– mas não muito,
digo eu quando as recordo, e que vão fazendo com que eu fale, com que me ria ou que me vá sentar num banco de jardim a olhar para um casal que se passeia de mãos dadas.
Sou apenas isto, eu sem vontade para nada e a pensar em ti, mesmo sabendo que o pior de tudo é pensar em ti, que o pior de tudo é acordar e abrir a porta de casa e ir dar aulas e voltar para casa e sentar-me no sofá e voltar para as aulas porque a hora de almoço já acabou e dar mais aulas e voltar para casa outra vez e pôr a chave na porta e estar tudo igual. E depois fazer o jantar e comer o jantar e ir para o ensaio e a seguir beber um copo não porque gosto de beber um copo mas apenas porque quero adiar esse momento em que volto a rodar a chave na fechadura de casa sabendo que tudo continua igual, eu a olhar para o escuro da casa e a pensar em ti, eu a pensar,
– se ao menos não pensasse em ti era apenas um homem a chegar a casa sozinho, podia ver televisão, ler um livro, ouvir música, podia escrever qualquer coisa, qualquer coisa que não fosse sobre ti. Podia apenas, não sei, deitar-me cedo, conseguir dormir, talvez poupar dinheiro para ir de férias no Verão.   
As pessoas dizem-me, as pessoas dizem-me assim,
– pelo menos fazes alguma coisa disso, mas
(há sempre um mas)
– está na altura de deixares isso.
– Bem,
disse eu,
– talvez isso seja o mesmo que pedir a uma tartaruga que se despache, que ande mais depressa e que se despache, e talvez isso não seja uma coisa boa, talvez isso não seja sequer uma coisa possível porque a tartaruga não consegue andar mais depressa, porque por muito que ela tente, por muito que se esforce, vai continuar lenta, a avançar lenta sem se despachar nem conseguir andar mais depressa,
e mesmo enquanto dizia isto estava a pensar em ti, no quanto sinto a tua ausência, no quanto o teu silêncio me domina.
Entretanto, hoje disseram-me assim,
– pelo menos tens 10 anos, pelo menos tens 10 anos à espera dela, eu nem isso tenho. Eu não tenho nada. Tenho um, até já, que me disseram da janela do carro. Só tenho isso e isso é muito pouco, isso não é nada.
E,
sabes,
(agora ia escrever o teu nome)
mesmo sendo tarde continuo a pensar em ti.