quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

BIOGRAFIA

Então,
talvez o mais difícil seja estar exactamente no mesmo sítio onde estava há um ano e ter absoluta certeza disso, que estou exactamente no mesmo sítio onde estava há um ano. E talvez o mais fácil seja saber que prefiro estar aqui do que noutro lado qualquer, mesmo que esse aqui seja mais frio do que quando Tchékov escrevia,
– tenho frio.
Acho que não sou uma pessoa complicada, contento-me com pouco desde que goste desse pouco. A maior parte das mulheres que foi para a cama comigo chama-me filho da puta e não me parece que queiram ofender a minha mãe. Há quem me defenda, quem diga que sou bem intencionado e que não quero o mal de ninguém. Claro que as que me chamam filho da puta não concordam, dizem que sou indiferente, distante, que só quero ir para a cama com elas e que nem sou capaz de lhes dar um beijo quando se vão embora, que as trato como lixo, que as trato como se fossem putas – houve outro dia uma que disse isso, que se ela fosse puta eu a tratava melhor – que de vez em quando até lhes dou cinco euros para o táxi,
– como se cinco euros desse para o táxi,
porque não me apetece levá-las a casa nem me apetece que elas durmam ao meu lado.  Mas eu não tenho culpa disso, acho que elas te deviam culpar a ti. Acho que elas te deviam culpar pelos cinco euros para o táxi e pela indiferença com que as trato, porque na verdade quando lhes digo,
– já te ias embora,
ou,
– desaparece daqui,
é em ti que estou a pensar. Quando lhes digo isso sou eu apenas a pensar que mais vale estar só do que estar sem ti, que mais vale ser eu a sonhar contigo do que tê-las a dormir ao meu lado.
E assim a minha vida é tudo aquilo que eu queria quando eu era novo, e assim a minha vida é tudo aquilo que eu não quero agora que começo a envelhecer.
Mas há quem diga bem de mim. Ainda ontem, por exemplo, uma rapariga disse para outras duas,
– olha, o nosso Miguel,
mesmo sabendo que eu não sou de nenhuma delas, até me perguntou por ti. Como o Bruno, hoje, me perguntou.
– como é que estão as coisas com ela?,
e eu disse que estão da mesma maneira como  sempre estiveram, estão da mesma maneira que estavam há dias e meses e anos e séculos e milénios, porque
não sei
se calhar já vivemos isto. Tenho essa sensação, a de que já vivemos isto, que somos uma repetição.
Eu disse que as coisas estão como estão, na mesma, comigo a deitar-me tarde e com ela a levantar-se cedo, porque as coisas são mesmo assim, porque às vezes o mais difícil não é aceitar o que acontece, às vezes o mais difícil é mesmo viver o que não acontece,
disse eu.
E é isso, meu amor. Vou vivendo assim, sem ti.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

WE ARE SEVEN

Pelas seis da manhã tudo é mais claro, todas as coisas à minha volta começam a fazer sentido, e não é apenas isto, não é apenas isto à minha volta, a minha casa, a louça por lavar, as luzes todas acesas, os post-it na parede, o sol a nascer, essas coisas que me garantem que estou na minha casa mesmo que seja estranho olhar em volta e dizer,
– esta é a minha casa,
porque quando era novo não imaginei que a minha casa fosse assim, não desta maneira, não sei como a imaginava, não sei dizer como era, mas tinha uma ideia diferente, talvez mais ampla, talvez mais branca, talvez apenas com mais qualquer coisa que esta não tem, pelo menos a esta hora não tem, às seis da manhã não tem aquilo que eu imaginava, e pelas seis da manhã tudo é mais claro e todas as coisas à minha volta começam a fazer sentido.
Ela fazia anos e estava sentada ao balcão de um bar, parece que estou sempre a encontrar pessoas que fazem anos ao balcão de um bar, mas a verdade é que conheço muitas pessoas e quando elas fazem anos têm o hábito de ir até ao balcão de um bar para festejar e fazer um brinde,
suponho,
ao que viveram ou ao que está para vir, e eu tenho o hábito de lá estar, eu tenho o péssimo hábito de lá estar, ao balcão de um bar, à espera que seja tarde o suficiente e vir para casa, até serem seis da manhã e poder voltar para casa com a sensação de que tudo à minha volta começa a fazer sentido. Ela fazia 20 anos. E eu disse,
– 20 anos?,
acho que me lembro de ouvir isso quando tinha 20 anos, acho que me lembro de me sentir velho aos 20 anos e de ter velhos a dizer-me,
– 20 anos?,
como se dissessem,
– quando eu tinha 20 anos.
Mas eu não disse,
– 20 anos?,
com a intenção de dizer,
– quando eu tinha 20 anos,
não. Não foi nada disso. Eu disse,
– 20 anos?,
como quem diz ,
– mas eu não tenho 20 anos, não estou a perceber, não somos da mesma idade?
Mais tarde, nessa noite, mandei-lhe uma mensagem a perguntar o quão velho ela me achava de zero a dez,
– de zero a dez, quanto é que achas que sou velho, não na idade, não no que sou, mas na tua cabeça, quanto é que achas que de zero a dez eu sou velho na tua cabeça?,
foi isso que aconteceu.
– Sete,
respondeu ela hoje,
– acho que és um sete, e já devias saber que esse flirt não funciona,
disse ela hoje, disse assim, 
– acho que és um sete, e já devias saber que esse flirt não funciona.
Entretanto o mundo continua. Há uma que vai e outra que volta, há uma que vai e vem, há outra que talvez venha e uma outra que eu espero que vá,
(bem, agora vai de certeza)
e, não sei, no meio disto tudo tento trabalhar, tento olhar para o computador e dizer,
– vou trabalhar,
mesmo que fique até às seis da manhã sem fazer nada, porque é impossível fazer alguma coisa, cada vez acho mais isso, que não consigo fazer nada, que sou apenas esta pessoa aqui fechada numa casa a ver pessoas a ir e a vir, a acharem-me velho porque estou realmente a ficar velho numa casa com a louça por lavar, as luzes todas acesas, os post-it na parede, o sol a nascer, e sem saber se essas pessoas que vão e vêm, sou eu a tentar esquecer-me de ti ou eu a tentar encontrar-te nelas. Sim, acho que é isso, mas nem te encontro nem te esqueço, e por isso continuo a tentar esquecer-te ou encontrar-te. Continuo sem conseguir encontrar-te ou esquecer-te nessas pessoas,
vou chamar-lhes isso
que passam por aqui, como se,
como se, o quê?,
como se fizessem alguma diferença.
No outro dia, quando te encontrei ao balcão de um bar,
(mesmo que não fizesses anos)
não consegui dizer,
– estás tão bonita,
que era o que eu queria dizer. Não queria dizer mais nada a não ser isso, mas
que estranho
não o disse.
Acho que só o consegui dizer uma vez, de todos os dias que te vi e de todos os dias em que te quis dizer isso, só o disse uma vez, mas quando o disse estive dois meses sem te ver,
(como castigo)
só assim,
– estás tão bonita,
acho que te quis dizer isto sempre que te vi mesmo que não o tenha dito e acho que se a seguir eu dissesse,
– pensa num número de um a dez,
tu dirias,
– sete.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

IDENTIDADE

– E já alguma vez pensaste em assentar?,
 pergunta ela,
– ficar em casa, poupar dinheiro, olhar para as coisas com calma, olhar para ti com calma, pensar em filhos, férias e feriados, uma mulher ao teu lado e um filme para ver todos os dias e horas certas para ir dormir?
Ela faz anos. Estamos os dois sentados ao balcão de um bar, eu olho para ela, para os olhos dela. Houve uma discussão ainda agora, de repente havia muita gente e de repente toda a gente se foi embora. E eu digo que sim, eu olho para ela, para os olhos dela e digo que sim, que já pensei em assentar, eu digo que tenho passado o último ano a pensar nisso, eu digo,
– não,
eu digo,
–  não foi o último ano, na verdade passei os últimos dois anos a pensar nisso, os últimos dois anos a pensar em assentar, a pensar que devia assentar e talvez ter filhos, e talvez nesta altura do ano uma árvore de Natal com luzes a piscar quando chego a casa, e jantar à mesa acompanhado e não um prato em cima do colo no sofá, e talvez ter alguém a quem dizer,
– vamos passar um fim-de-semana a Dublin ou Praga ou Paris, as passagens estão baratas e eu ganho bem e etc.
Ela olha para mim. Ela pergunta,
– que idade tens?
Eu digo a minha idade e ela diz que se eu casar agora vou, muito provavelmente, ser feliz, que aos vinte anos ninguém é feliz e que as pessoas que se casam com a minha idade já conseguem ser felizes, ela diz que sabe o que está a dizer, ela diz,
– eu sei o que estou a dizer,
porque é o trabalho dela. Ela organiza casamentos e diz que os que resultam são os das pessoas com a minha idade e eu acho que ela me está a chamar velho, ou então que estou na meia-idade, como uma aluna me disse no outro dia,
– é a meia-idade,
depois de eu dizer que era velho para os novos e novo para os velhos.
Entretanto não tenho escrito. Acho que deixei de conseguir escrever. Os últimos meses têm-me dito isso, que não consigo escrever, que estou farto, que não aguento mais, que quero sossego e solidão, fazer brownies aos Domingos e receber amigos de quando em vez, quando lhes der jeito ou quando me der jeito, mas as pessoas encomendam-me textos, peças e não só, e eu digo que sim, eu digo que sim porque acho que ainda tenho dez anos à minha frente, depois, que se foda, mas dez anos tenho à minha frente, dez anos a escrever mesmo que não consiga escrever, dez anos a escrever mesmo que queira parar agora, mas dez anos é muito tempo, preferia assentar, preferia, etc
E depois paro. E depois olho para mim à noite. Bem, pode ser de dia. Ao almoço dizem-me que há um clube Miguel Graça. E eu digo,
– que estranho, no outro dia, ao balcão de um bar, talvez porque estivesse sentado ao lado da máquina registadora, um homem pegou na minha carteira em cima do balcão, e tudo isto sem querer, e pegou no meu dinheiro e pagou com o meu dinheiro até eu dizer,
– desculpe, essa carteira é minha.
 E o mais estranho é a carteira aberta, e eu a dizer,
– este sou eu,
a apontar para o meu cartão de cidadão (caducado desde Março),
– este sou eu, eu sou o Miguel Graça.


segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

INTIMIDADE

Talvez seja do frio, talvez seja da chuva, talvez seja apenas estar constantemente a perder dinheiro em apostas de jogos de futebol no último minuto quando não percebo nada de futebol e muito menos de apostas, ou então chegar a casa e ver que a secretária continua igual desde que despedi a empregada, eu a procurar caneta e papel e a descobrir o computador no meio do chão, eu atafulhado de papéis e canetas e a descobrir o computador debaixo dos papéis e das canetas e eu a pensar,
– que raio de vida esta, em que encontro o computador no meio do chão quando tenho por cima de mim papéis e canetas quando na verdade o que procurava eram esses papéis e essas canetas que agora transbordam sobre mim.
Talvez sejam as luzes de Natal – uns sinos adornados com um laçarote, a badalar rua abaixo, para a esquerda e a para a direita, como fotogramas que juntos fazem,
– dlin dlão,
enquanto eu olho para eles e penso,
– que se fodam os sinos de Natal e os presépios e o jingle bells,
que se foda isso tudo,
penso,
enquanto desço rua abaixo,
eu a descer a rua,
eu a descer rua abaixo,
a olhar para trás,
eu a olhar para trás enquanto desço a rua, e eu a pensar,
– devia transformar-me em sal.
As pessoas dizem-me que eu perdi a alma,
– perdeste a alma,
as pessoas olham para mim e dizem,
– estás a repetir-te
ou,
– já disseste isso,
e eu olho para elas e concordo, eu digo,
– tens razão,
como quem diz,
– tens razão,
porque é isso mesmo que quero dizer, que elas têm razão, elas têm razão em dizer que eu perdi a alma porque quando rodo a chave na fechadura, quando ao abrir a porta de casa rodo a chave na fechadura, parece que
não sei
parece que sou apenas eu a rodar a chave na fechadura. Eu a rodar a chave  na fechadura e a ver o escuro à minha frente. Eu a acender a luz e o escuro ainda à minha frente. Eu a adormecer no escuro, eu a viver no escuro. Não foi sempre assim. Penso,
– não foi sempre assim,
e convenço-me de que isso é verdade, no escuro, abro os olhos e digo,
– não foi sempre assim,
mas se calhar foi sempre assim e eu apenas
 e eu apenas
 e eu apenas.
Talvez seja do frio, talvez seja porque ontem, quando dei a mão à minha irmã e lhe disse,
– vai ficar tudo bem,
ela a olhar para mim e eu a dizer-lhe,
– vai ficar tudo bem,
pensei que por muito que eu diga que vai ficar tudo bem não vai ficar tudo bem. Eu a pensar que vai tudo ser uma merda mesmo que ao pegar-lhe na mão eu diga,
– vai ficar tudo bem.
Talvez seja qualquer coisa. Talvez seja qualquer coisa qualquer, o frio, a chuva, as decorações de Natal, os sinos a badalar para um lado e para o outro, etc. Talvez seja qualquer coisa, uma coisa dessas, uma coisa dessas qualquer.
E agora escrevia assim,
– seja lá o que for,
e depois ia dormir.
Talvez seja isso, Talvez seja só isso, tu a dares-me a mão e a dizeres,
– vai ficar tudo bem.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

REPEAT

Então,
(tal como Vladimir e Estragon)
tenho passado os últimos dias
(uma semana, mais coisa menos coisa – talvez mais do que isso)
resumido a um,
– nothing to be done,
que normalmente traduzem por,
– nada a fazer,
mas que eu, aplicando-o à minha vida, traduziria por,
– nada a fazer apesar das muitas coisas que se fazem, como acordar, tomar os comprimidos, comer qualquer coisa e perceber que devia ter comido primeiro e só depois ter tomado os comprimidos porque supostamente atacam o estômago e ninguém quer estar doente de uma coisa e depois ficar ainda por cima com o estômago a arder, tomar um banho, vestir-me, ir dar aulas, voltar das aulas, deitar-me no sofá e dormir enrolado num cobertor porque tenho frio e acordar cheio de calor e olhar para o despertador e achar que são nove da manhã quando são nove da noite e pensar,
– tenho de tomar os quatro comprimidos que não tomei,
mas afinal são só dois porque afinal são nove da noite e não nove da manhã, e por isso levanto-me e tomo mais comprimidos e depois volto para o sofá e volto a dormir porque os comprimidos me dão sono e depois a mesma coisa às quatro da manhã a mesma coisa, e eu a pensar,
– nothing to be done,
(como Vladimir e Estragon)
enquanto me dispo e me deito na cama e adormeço entre o frio e o calor, já sem saber qual deles prefiro, já sem saber há quantos dias estou assim, sem ver ninguém, sem falar com ninguém, irritado se a campainha toca,
– volta noutro dia, daqui a muito tempo de preferência,
irritado se o telefone toca,
– não quero falar com ninguém, muito menos contigo.
E assim tem sido uma semana complicada,
(acho que consigo concordar com isso)
a dizer a mim mesmo enquanto decido continuar,
– um… dois… três...
quando tenho vontade de dizer,
– acho que desta vez não me safo.
No Hospital de Cascais deram-me uma pulseira vermelha, disse,
– gripe das aves,
quando me perguntaram quais os sintomas,
– ou isso ou ébola.
Cinco minutos depois um médico com máscara na cara e ar de médico sem fronteiras dizia-me que o meu problema eram as alergias,
– o seu problema são as alergias.
disse ele,
– alergias?,
disse eu,
– alergias a quê?
Depois receitou-me um anti-histamínico,
– isto é muito forte, tenha cuidado,
que eu comprei na farmácia e depois vim para casa e tomei os comprimidos e fui deitar-me no sofá à espera de sentir-me melhor.
Sonhei que nada acontecia na minha vida, que a minha vida era uma repetição constante de dias que se repetiam uns atrás dos outros, que acordava e adormecia com o mesmo entusiasmo, que quando alguma coisa me chamava a atenção era porque ouvia no rádio do carro enquanto ia comprar tabaco,
– o Leonard Cohen morreu, Miguel,
e eu a pensar,
– mas porque é que o gajo da rádio está a falar comigo?,
e sempre a pensar nisso, principalmente no elevador do prédio, quando não há mais nada para olhar a não ser o espelho,
– porque é que o gajo da rádio estava a falar comigo?,
e chegava a casa e percebia que o Leonard Cohen tinha morrido e que eu nem tinha percebido porque estava aqui fechado sem ver ninguém e sem falar com ninguém.
E depois o sonho acabava e eu acordava do sonho, ainda agora, agora mesmo, levantei-me e pensei,
– os comprimidos devem estar a fazer efeito.
Pensei,
– os comprimidos devem estar a fazer efeito, que bom, sou eu outra vez, sou eu outra vez sem sonhos estranhos e idas ao hospital depois das aulas. Mas mesmo assim, mesmo curado, mesmo sem alergias, mesmo sem sono e sem sonhos e com o Leonard Cohen morto, eu digo, digo assim em voz alta como se alguém me ouvisse,
(tal como Vladimir e Estragon)
– olha para mim, não há nada a fazer?

domingo, 6 de novembro de 2016

DINAMENE

– Ainda vais escrever?,  
pergunta ela.
Eu digo que não, que não vou escrever. Digo que o computador não funciona e que só tenho o portátil e que no portátil tenho de martelar nos acentos para ter acentos e martelar no espaço para ter espaços e martelar nas teclas todas para que saia qualquer coisa, porque se não sai tudo ao contrário ou não sai nada. Eu digo que amanhã tenho um dia longo, que vou almoçar a Lisboa com a minha mãe e que à noite dou um jantar em minha casa, que ainda tenho de ir às compras, que nem sequer sei o que vou fazer para o jantar. Eu digo que tudo isso me deixa irritado, eu digo que não vou escrever. 
Estamos os dois sentados ao balcão de um bar, eu paguei a conta, tu chegaste nem há meia hora, eu estava a olhar para o telefone, para um daqueles jogos que jogamos para passar o tempo quando estamos sozinhos de madrugada ao balcão de um bar - sou bom nisso, nesses jogos que jogamos para passar o tempo quando estamos sozinhos de madrugada ao balcão de um bar. E como estou de costas para a porta não te vejo entrar, mas quando o Francisco à minha frente diz do lado de lá do balcão,
– então, estás bem?,
de alguma maneira eu sabia que ia ver o teu rosto quando virasse a cara. E depois virei a cara. E depois vi-te. E ainda antes de sorrir e ainda antes de dizer,
– olá,
e ainda antes de começar a fingir que estar contigo aqui sentado ao balcão de um bar é a coisa mais normal do mundo, não conseguia parar de pensar no que eu parecia, não conseguia parar de pensar que eu era um tipo sozinho ao balcão de um bar a jogar um jogo no telemóvel e no quanto eu era,
 ridículo,
que foi o que tu pensaste mesmo que não o tenhas dito.
Depois falámos meia hora e eu paguei. Tu perguntaste-me se eu ainda ia escrever e mesmo tendo dito o contrário, estou aqui a martelar no espaço e nos acentos.
(e desinstalei o jogo.)
Estavas nervosa e disseste,
– tenho sonhado que vou morrer,
e eu apenas sorri porque a maior parte das vezes a única coisa que consigo fazer à tua frente é sorrir, mas não queria sorrir, até porque, se uma pessoa diz,
– acho que vou morrer,
e a outra sorri, parece que,
percebem?,
parece que ia ter gosto nisso. Estive para dizer,
– que engraçado, sabes que te chamam Dinamene?, sabes que às vezes algumas pessoas me dizem,  dizem-me assim,
– tens visto a tua Dinamene?,
ou,
– e a tua Dinamene, como é que vão as coisas?
As coisas, claro, não vão de maneira nenhuma. As coisas nunca vão de maneira nenhuma. Às vezes parece que morreste. Às vezes sento-me aqui, onde estou agora sentado, onde me sento todos os dias antes de me ir deitar, quando penso no que passou, quando penso no dia que passou, no que eu fiz, no que eu não fiz, no que aconteceu e no que não aconteceu, e às vezes, aqui sentado, a olhar para o tempo a passar ao meu lado ou para mim no mesmo sítio, e parece que morreste. Parece mesmo que morreste e que eu nem me apercebi, como naquele dia em que te sentaste ao meu lado ao balcão de um bar enquanto eu olhava para o telemóvel e o Francisco dizia,
– Então, estás bem?

Não.
Isto não é um bom final.
Um bom final é eu dizer que tudo isto faz parte de qualquer coisa, de um plano qualquer que nos ultrapassa e que, como dizia o Thom York,
 somos acidentes à espera de acontecer.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

PALÍNDROMO

Não ia começar assim, não ia começar desta maneira, não ia começar por dizer,
– não sei porque vou fazer isto. Não sei porque vou fazer isto outra vez, não quero fazer isto outra vez,
não era nada disto, não era assim. Ia começar de outra maneira. Ia começar comigo a dizer,
– não choveu o dia todo, mas tive essa sensação, de que choveu o dia todo, enquanto deitado no sofá olhava intermitente para o tecto, para a televisão, para o tapete, para o cinzeiro, para a tua fotografia na parede
(sim, entretanto há uma fotografia tua na parede)
para mim que continuava deitado no sofá e para o telefone que não parou de tocar com mensagens e e-mails e telefonemas e eu sem ver nenhum deles, eu intermitente entre o sofá e a varanda, entre a rua e o chão, o asfalto e o tapete, eu a olhar para o céu e a achar que parece que está a chover mesmo que não haja uma única nuvem e nem sequer uma gota de água que me caia no pescoço quando venho cá fora fumar um cigarro.
E depois, agora, ao fim do dia, enquanto olho para a parede à minha direita, onde o tempo se continua a acumular, onde o tempo não pára de crescer em post-its cor-de-rosa que marcam um, dois, três dias, etc, penso aqui sentado que talvez os dias e meses apenas se transformem em mais dias e mais meses, etc, que por muito tempo que passe, por muito que aconteça, vou sempre ficar aqui, parado, no fim da noite, a olhar para o tempo a passar enquanto as pessoas me telefonam e mandam mensagens a dizer coisas como,
– o que é feito de ti?
ou
– fodia-te agora.
Ela diz-me que esta história, esta história de amor, só resulta porque acaba mal, porque é incompleta. Ela diz que só é uma história de amor porque acabou mal, e por muito que eu diga que não é bem assim, que a história ainda não acabou, que eu acho que ainda não acabou, a verdade é que,
a verdade é que eu paro,
e paro mesmo. Paro e pergunto-me,
– o que é que estás a fazer?,
porque ultimamente parece que tudo converge para essa pergunta, para o que é que eu estou a fazer, parece que nada funciona e, ao mesmo tempo, nada funciona realmente: o computador, a televisão, a máquina de café, a minha cabeça.
[E depois eu disse, eu disse assim,
– não quero saber, não quero mesmo saber, faz o que tens a fazer, se é isso que achas que deves fazer
(e depois cortei umas coisas que tinha escrito porque achei que era demais, achei que as pessoas iam perceber o que eu queria dizer, e eu não quero que as pessoas percebam o que estou a dizer)
mesmo que seja isso que eu queira gritar quando saio à rua nas poucas vezes que saio à rua, nas poucas vezes em que vejo a luz do Sol ou a luz da Lua ou o brilho do dia ou o brilho da noite, ou
e depois ela disse,
– cala-te,
e eu calei-me.
Sim. Às vezes é isso que penso, quando à noite me deito e encosto a cabeça na almofada,
– que estúpido sou,
penso eu quando encosto a cabeça na almofada.]
Digamos que é estranho pensar em mim, digamos que é estranho pensar nas pessoas que me são próximas. A minha sobrinha, por exemplo, fez 19 anos na semana passada, talvez há mais tempo, não sei, mas seja há uma ou duas semanas, não interessa, é estranho ter uma sobrinha que tem 19 anos.
Houve uma festa. Disse a meio do almoço,
– é estranho teres 19 anos, lembro-me de ti quando nasceste, cabias nos meus braços, de olhos fechados porque estavas sempre de olhos fechados, e por isso é estranho olhar para ti e teres 19 anos e já não caberes nos meus braços e teres crescido e seres uma mulher e teres os olhos abertos. Que estranho, que estranho que tudo isto é. Ainda ontem fui para a cama com uma miúda da tua idade e, percebes?, há qualquer coisa de errado nisso, qualquer coisa, qualquer coisa de errado em mim.
E a minha sobrinha a olhar para mim, e toda a gente a olhar para mim, e eu calado a olhar para toda a gente.
E toda a gente se cala. E é estranho toda a gente se calar, ou talvez seja apenas aquele momento em que toda a gente se cala, aquele momento em que todas as vozes se deixam de ouvir, em que apenas se ouve um,
– Mike?,
da minha irmã enquanto olha para mim com os olhos abertos, como se perguntasse,
– estás parvo?,
porque há pessoas mais velhas ao nosso lado, pessoas mais velhas que felizmente dizem,
– hã?
quando alguém lhes diz alguma coisa ou quando eu digo o que costumo dizer
essas coisas desagradáveis
essas coisas
coisas

Então.

Então desta vez eu estava a pensar, eu estava a pensar assim, desta vez eu estava a pensar assim,
– quando eu era novo,
e deve ser isso, deve ser apenas isso, deve ser apenas a consciência desse,
– quando eu era novo,
uma coisa algures lá atrás, um tempo distante, eu sem este ar acabado, eu sem este aspecto de quem acabou de cair das escadas abaixo, eu sem marcar o tempo na parede, sem hesitar antes de fazer, sem pensar em ti, eu a deixar de pensar em ti, eu a encontrar uma maneira de nunca mais pensar em ti, nem agora nem depois, eu, apenas eu a dizer,
 and therein, as the Bard tell us, lies the rub.