– Vou ser o teu espelho, um reflexo do que és,
caso não saibas o que és. Vou ser o vento, a chuva e o pôr-do-sol, vou ser a
luz à entrada da tua porta para saberes que chegaste a casa,
cantava a Nico com os Velvet Underground faz
hoje cinquenta anos, não faz cinquenta anos que eles lançaram o álbum, faz
cinquenta anos que eles se juntaram todos, em estúdio, e gravaram a música ao
fim de três takes. Deles os cinco, que lá estavam, em estúdio, morreram o
Sterling Morrison, de linfoma, o Lou Reed, de cirrose hepática, e a Nico, de
hemorragia cerebral, depois de ter tido um ataque cardíaco enquanto andava de
bicicleta e ter batido com a cabeça no chão. O Jonh Cale e a Maureen Tucker ainda
estão vivos, ele tem 74 anos e ela 72. E hoje, há cinquenta anos, gravaram
juntos em Nova Iorque a música I’ll be your Mirror, que estou agora a
ouvir e que vou continuar a ouvir até mais daqui a um bocado, quando acabar de
escrever e decidir que não me vou deitar, que não me quero deitar, que a minha
vida afinal é uma luta contra o sono, uma luta contra adormecer.
Lembrei-me disto porque no final do espectáculo
temo-nos deixado ficar por ali, e eu tenho posto a tocar os Velvet Underground,
não sei porquê tem-me dado para isso, para ouvir os Velvet Underground depois
do espectáculo, até mesmo a seguir, quando regresso sozinho para casa de carro,
e depois em casa também, já de madrugada, quando me sento e acrescento um dia
na parede e suspiro e penso,
– dez anos não é nada, dez anos passam num
instante. Disseste a ti próprio que esperavas dez anos, que até eras capaz de
esperar mais do que isso, que esperavas até morrer, se fosse preciso, que mesmo
depois de morto eras capaz de continuar a esperar, então não há nada a fazer a
não ser esperar e esperar que não sejam dez anos, que seja um pouco menos, que
seja talvez amanhã mesmo sabendo que não vai ser amanhã, o importante é ir
marcando o tempo na parede, perceber como ele se demora, como os dias não são
curtos nem longos, como eles têm exactamente a mesma duração, com os mesmos
segundos e os mesmos minutos e as mesmas horas, e que no fim tudo se resume ao
Lou Reed, com o médico a dizer depois do transplante de fígado,
– lamento, fizemos tudo o que pudemos, não há
mais nada a fazer,
e o Lou Reed a acenar com a cabeça e a dizer
que ia para casa, que se ia abraçar à mulher e esperar tranquilo pela morte,
ou a Nico inconsciente de manhã num hospital em
Ibiza com um médico a dizer,
– isto é uma insolação,
e ela morta às oito da noite enquanto o filho
lhe segurava na mão num hospital em Ibiza porque um médico diagnosticou uma
hemorragia cerebral como uma insolação.
À tarde não vejo filmes, nem leio, nem vou ao
café beber um café e sentar-me na esplanada a fingir que sou uma pessoa com
tempo livre e que por isso passo a tarde no café a apanhar sol, nem sequer está
sol, à tarde fico em casa sentado a olhar para o relógio, a deixar passar o
tempo para que o tempo passe. Começo a achar que tudo o que digo é mal
interpretado, e por isso deixo-me ficar calado a olhar para o relógio, a ver o
tempo passar.
Ontem, depois do espectáculo, enquanto me
sentava a fumar um cigarro e ouvia a Nico a dizer,
– vou ser o teu espelho, um reflexo do que és,
caso não saibas o que és. Vou ser o vento, a chuva e o pôr-do-sol, vou ser a
luz à entrada da tua porta para saberes que chegaste a casa,
olhei para ti e olhei para eles e pensei que
daqui a cinquenta anos talvez de nós os cinco também sobrem apenas dois. Pensei
que pela ordem natural das coisas eu vou ser o primeiro a ir e que isso não me
incomoda, que isso não me incomoda nada, que apenas quero que me aconteça
acontecer-me o mesmo que aconteceu ao Lou Reed quando o médico lhe disse,
– não há
mais nada a fazer.