domingo, 29 de janeiro de 2017

I'LL BE YOUR MIRROR

– Vou ser o teu espelho, um reflexo do que és, caso não saibas o que és. Vou ser o vento, a chuva e o pôr-do-sol, vou ser a luz à entrada da tua porta para saberes que chegaste a casa,
cantava a Nico com os Velvet Underground faz hoje cinquenta anos, não faz cinquenta anos que eles lançaram o álbum, faz cinquenta anos que eles se juntaram todos, em estúdio, e gravaram a música ao fim de três takes. Deles os cinco, que lá estavam, em estúdio, morreram o Sterling Morrison, de linfoma, o Lou Reed, de cirrose hepática, e a Nico, de hemorragia cerebral, depois de ter tido um ataque cardíaco enquanto andava de bicicleta e ter batido com a cabeça no chão. O Jonh Cale e a Maureen Tucker ainda estão vivos, ele tem 74 anos e ela 72. E hoje, há cinquenta anos, gravaram juntos em Nova Iorque a música I’ll be your Mirror, que estou agora a ouvir e que vou continuar a ouvir até mais daqui a um bocado, quando acabar de escrever e decidir que não me vou deitar, que não me quero deitar, que a minha vida afinal é uma luta contra o sono, uma luta contra adormecer.
Lembrei-me disto porque no final do espectáculo temo-nos deixado ficar por ali, e eu tenho posto a tocar os Velvet Underground, não sei porquê tem-me dado para isso, para ouvir os Velvet Underground depois do espectáculo, até mesmo a seguir, quando regresso sozinho para casa de carro, e depois em casa também, já de madrugada, quando me sento e acrescento um dia na parede e suspiro e penso,
– dez anos não é nada, dez anos passam num instante. Disseste a ti próprio que esperavas dez anos, que até eras capaz de esperar mais do que isso, que esperavas até morrer, se fosse preciso, que mesmo depois de morto eras capaz de continuar a esperar, então não há nada a fazer a não ser esperar e esperar que não sejam dez anos, que seja um pouco menos, que seja talvez amanhã mesmo sabendo que não vai ser amanhã, o importante é ir marcando o tempo na parede, perceber como ele se demora, como os dias não são curtos nem longos, como eles têm exactamente a mesma duração, com os mesmos segundos e os mesmos minutos e as mesmas horas, e que no fim tudo se resume ao Lou Reed, com o médico a dizer depois do transplante de fígado,
– lamento, fizemos tudo o que pudemos, não há mais nada a fazer,
e o Lou Reed a acenar com a cabeça e a dizer que ia para casa, que se ia abraçar à mulher e esperar tranquilo pela morte,
ou a Nico inconsciente de manhã num hospital em Ibiza com um médico a dizer,
– isto é uma insolação,
e ela morta às oito da noite enquanto o filho lhe segurava na mão num hospital em Ibiza porque um médico diagnosticou uma hemorragia cerebral como uma insolação.
À tarde não vejo filmes, nem leio, nem vou ao café beber um café e sentar-me na esplanada a fingir que sou uma pessoa com tempo livre e que por isso passo a tarde no café a apanhar sol, nem sequer está sol, à tarde fico em casa sentado a olhar para o relógio, a deixar passar o tempo para que o tempo passe. Começo a achar que tudo o que digo é mal interpretado, e por isso deixo-me ficar calado a olhar para o relógio, a ver o tempo passar.
Ontem, depois do espectáculo, enquanto me sentava a fumar um cigarro e ouvia a Nico a dizer,
– vou ser o teu espelho, um reflexo do que és, caso não saibas o que és. Vou ser o vento, a chuva e o pôr-do-sol, vou ser a luz à entrada da tua porta para saberes que chegaste a casa,
olhei para ti e olhei para eles e pensei que daqui a cinquenta anos talvez de nós os cinco também sobrem apenas dois. Pensei que pela ordem natural das coisas eu vou ser o primeiro a ir e que isso não me incomoda, que isso não me incomoda nada, que apenas quero que me aconteça acontecer-me o mesmo que aconteceu ao Lou Reed quando o médico lhe disse,
 – não há mais nada a fazer.

domingo, 22 de janeiro de 2017

E TAMBÉM NÃO DEVE SER FÁCIL PARA ELE

É sempre desagradável quando entramos a meio de uma conversa que só depois percebemos ser sobre nós,
não que me esteja a lembrar de alguma situação em particular, mas,
por exemplo,
quando entramos num café e vamos ter com dois amigos que estão sentados ao balcão de costas para nós a falar animados um com o outro,
e olhamos para eles mesmo que eles não nos vejam e sorrimos sozinhos porque é sempre agradável entrar num café e encontrar dois amigos a falar animados um com o outro, mesmo que de costas para nós, a falar ao balcão, e ao aproximarmo-nos ouvimos o final de uma conversa, uma frase solta de alguém que diz,
– sim, ele está todo fodido,
ou,
– não sei o que se passa, mas alguma coisa se passa porque ele é mais transparente que a água das Maldivas (estive lá há dois anos e sei bem do que estou a falar, não há água mais límpida que aquela) e uma pessoa olha para ele e sabe logo o que se passa ali dentro, parece que lhe deitaram uma tonelada de petróleo pela garganta abaixo e que todo ele está a arder por dentro, parece que todo ele é um incêndio, que todo ele é madeira a arder, uma floresta queimada cheia de cinzas e fumo negro,
e é sempre nesse momento que colocamos a mão sobre os ombros  de cada um dos amigos e dizemos com um sorriso porque ainda não percebemos de quem é que se está a falar,
– quem é que está todo fodido?,
ou,
– quem é que é transparente como a água das Maldivas?,
e depois eles olham para nós e mudam tão depressa de expressão que é impossível não pensar,
– ah, a sério?
Também me acontece um amigo telefonar-me e perguntar,
– então, e tu, meu amigo, como estás?,
e eu, porque não tenho nada para fazer e me apetece rir um bocado, digo com um sorriso que ele não vê porque estamos a falar ao telefone,
– estou todo fodido,
e o David do outro lado,
– sim, já sei, já sei, estive ontem com o Pedro e com o Bruno, estivemos a noite toda a falar de ti, aliás, toda a gente anda a falar de ti, cada vez que encontro alguém falam-me de ti, de como estás na merda, de como mal te consegues levantar todos os dias, de como pareces ter morrido, de como és apenas um corpo que vagueia para um lado e para o outro sem saber para onde vai, fala-se sobretudo do teu olhar vazio, de ficares a olhar para a parede calado, tu parado a olhar para uma parede, tu tão parado quanto a parede quando toda a gente à tua volta fala e olha para ti à espera que fales também, alguns dizem mesmo que te esqueceste de morrer, que já morreste e que finges que continuas vivo, que tens sempre frio porque és um cadáver, que o teu coração parou há demasiado tempo para ainda bater,
depois ninguém falou e fez-se um silêncio outra vez.
Hoje, ao jantar, disseram-me assim,
– sabes, se eu nunca limpar os óculos vou ver sempre tudo turvo.
E eu disse,
– isso é uma metáfora?,
e o Pedro disse,
– acho que estou a ser bastante claro.
E fez-se outro silêncio.
E depois eu disse,
– Sabes,
olhei para ele e disse assim,
– detesto a palavra sempre, é muito raro usá-la, mas é a sexta vez que a estou a utilizar neste texto, sétima com esta última.
Não sei.
Talvez seja uma questão de tempo.
Ontem, por esta hora, sentei-me onde estou agora e escrevi uma frase, e foi uma boa frase, que explicava isto tudo, mas não a posso repetir, não a posso escrever agora porque,
anyway
como se diz agora,
who cares?

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

MEU AMOR

Sou daqueles que esconde mais do que mostra, sim, acho que sou daqueles que esconde mais do que mostra, daqueles que desvia o olhar e não quer dizer o teu nome, daqueles que não sabe sequer como dizer o teu nome, daqueles que não diz o teu nome com medo de ser transparente, tão transparente que toda a gente repara naquilo que toda a gente sabe e que toda a gente repara mesmo que eu esconda o teu nome e me esconda a mim, a desviar o olhar, a fingir que não existes, a fingir que és apenas um encolher de ombros quando me perguntam por ti ou a fingir-me distraído e ausente, a fingir-me espantado e indiferente,
– hã?
quando me dizem que te viram aqui e ali, que ouviram esta e aquela história, quando me dizem o teu nome e te insultam, e insultam-te a sério, porque se lembram de te insultar talvez apenas porque é tarde e porque, acho, olham para ti e pensam que não me mereces, não é que não me mereças, é não mereceres o que sinto por ti, é olharem para mim e acharem que eu sou um desperdício, que eu desperdiço sentimentos, que eu desperdiço os meus sentimentos todos contigo, que eu sou apenas um desperdício de sentimentos na pessoa errada, e por isso insultam-te, chamam-te puta e coisas piores, enquanto eu escondo mais do que mostro e encolho os ombros e digo,
– o que é que eu tenho a ver com isso?,
ao mesmo tempo que cada vez mais me sinto como a minha prima Francisca, que há quase dois anos, na carta de suicídio, escreveu,
– não me mato por amor, mas pela falta dele, do amor
(o meu tio, o pai da Francisca, a ler a carta de suicídio para a família enquanto toda a família chorava a morte da Francisca-encharcada-em-comprimidos e eu a pensar,
– devias ter pedido a minha ajuda, Francisca,  devias ter pedido a minha ajuda para rever o texto, que merda de frase).
À tarde, hoje, depois das aulas, fui fazer compras. Eu cheio de sacos para o jantar, um em cada braço, a balançar pela rua, a tentar chegar à porta do prédio sem deixar que um deles me mande ao chão. E penso em ti enquanto atravesso a estrada, penso em ti ao meu lado, a atravessar a estrada com sacos debaixo do braço. Penso em ti ao meu lado tão rápido quanto desapareces e eu fico a olhar para a estrada sem carros porque não está lá ninguém.
Daqui a uma horas, ao balcão de um bar, o Bruno há-de perguntar-me,
– e tu, estás bem?,
e eu hei-de responder enquanto olho para lado nenhum,
– sim.
Entro no prédio com os sacos e a pensar em ti. Atrás de mim aparece um homem com a filha. Eu olho para trás. Olho para eles. Eu digo,
– boa tarde,
e o homem, que deve ser mais novo que eu, diz,
– boa tarde,
a miúda, que deve ter uns cinco ou seis anos não diz nada, apenas olha para mim e para os sacos. Eu estou com vontade de desaparecer, de me ver em casa sem vizinhos nem elevadores, de apenas imaginar um mundo onde caminhas descalça à minha frente pela relva e eu olho para ti e tu dizes,
– Mike,
e eu a olho para ti e mostro muito mais do que escondo, e tu olhas para mim.
Entretanto,
na vida real,
estou no elevador com sacos de um lado e de outro e uma miúda de cinco ou seis anos a olhar para mim fixamente e a dizer-me, a dizer-me nos olhos enquanto eu olhava para ela,
– porque é que estás tão triste?,
e o pai que deve ser mais novo que eu,
– deixa o senhor em paz,
e o pai para mim,
– desculpe,
e eu com um sorriso,
– não faz mal,
e a miúda outra vez quando voltei a olhar para ela,
– porque é que estás tão triste?

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

ALL THE PLACES YOU CAN GO

Sabes,
quando ao fim de dez tentativas falhadas de enfiar a pen no computador decidi olhar com atenção para a pen e para o computador e percebi que estava há dez tentativas a tentar enfiar um isqueiro numa entrada USB pensei,
é normal que estas coisas aconteçam, é normal que tente enfiar isqueiros em computadores, estou tão cansado que tento enfiar uma pen que é um isqueiro no computador, estou tão cansado que não consigo dormir,
não estou cansado porque foi um dia longo,
não é isso,
estou cansado porque por muito que não queira tenho quase quarenta anos e de certa maneira parece que,
parece que tudo começa a ser mais difícil mesmo que achasse que ia ser mais fácil, e talvez por isso esteja tão cansado,
tão cansado que tenho a ideia de ir dormir, de me ir deitar, e depois levanto-me do computador e depois de doze horas,
desculpa,
depois de doze passos, dou por mim parado a meio da casa a olhar para as coisas sem saber o que estou ali a fazer, a meio da casa, com um isqueiro na mão, a olhar para a mesa, os livros, as paredes, e a pensar,
mas o que é que eu estou aqui a fazer, parado a meio da casa sem saber para onde ir?, será que ia buscar alguma coisa?, mas eu não estou à procura de nada por isso não há nada que eu fosse procurar, será que ia mijar?, mas não tenho vontade de mijar por isso não faz sentido estar aqui, de pé, a meio da casa, a pensar se vou mijar quando não tenho vontade de mijar ou a pensar se estou à procura de alguma coisa quando não tenho nada que procurar,
até tenho um isqueiro na mão,
e por isso volto a sentar-me ao computador e penso,
tenho tanto que fazer e tão pouca vontade para tudo, parece que tudo o que tenho para fazer é um desperdício do que sou, parece que tudo o que faço é apenas uma outra pessoa que eu inventei, a fazer aquilo que os outros acham que eu devo fazer, e por isso vou fazendo as coisas só porque sim, sem saber bem o que estou a fazer, sem ânimo nem vontade, continuar a continuar, olhar para o lado, quer seja sentado ao computador, a meio da casa ou deitado na cama e pensar,
é estranho estar aqui,
porque é estranho estar aqui, é tão estranho estar deitado na cama, como em pé a meio da casa, ou sentado ao computador, porque entretanto depois de não saber o que estava a fazer a meio da casa, voltei para o computador porque achei que era cedo para ir para a cama e depois de não conseguir enfiar o isqueiro numa entrada USB porque queria transferir uns ficheiros para uma pen, comecei a falar com o Pedro sobre a peça e sobre coisas que temos de tratar e às tantas ele disse uma coisa e eu disse outra coisa e depois ele disse,
– és demasiado poético,
como se dissesse que é normal  as coisas estarem como estão, que eu não tenho nada que  me queixar,
– és demasiado poético,
disse ele,
– ninguém percebe o que estás a dizer,
disse ele,
– eu estou a falar da tua vida, não estou a falar dos teus textos, os teus textos toda a gente percebe,
disse ele,
– estou a falar de ti,
disse ele,
– estou a falar da tua vida,
e entretanto adormeci,
talvez duas horas ou três horas a dormir, a dormir sentado à frente do computador enquanto o Pedro falava comigo e eu não respondia adormecido,,
ainda agora era cedo e ia deitar-me cedo, e de repente são duas ou três horas a mais, de repente são horas a menos e são coisas a mais,
tenho de perder este hábito de estar tão cansado que adormeço em qualquer lado,
no outro dia acordaram-me na portagem,
uma fila de carros atrás de mim a apitar e o homem da portagem aos gritos, a dizer para eu baixar o vidro, que eu tinha de pagar, que havia um hotel na auto-estrada e que era melhor ir para casa,
– és demasiado poético, vai para casa,
disse o homem da portagem,
não sei,
confundo as histórias,
e,
sabes,
talvez seja só isso, talvez seja mesmo só isso, só coisas que eu não consigo que aconteçam mesmo tendo esta certeza de que deviam acontecer,
como enfiar um isqueiro numa entrada USB.

domingo, 1 de janeiro de 2017

O ÚLTIMO DIA DO ANO

Das muitas citações que poderia fazer de Thomas Bernhard, talvez a que mais me agrade seja aquela que começa por,
– a vida é maravilhosa,
e depois continua com,
– mas o mais maravilhoso é pensar que ela tem um fim.
À tarde, enquanto estava a traduzir uma peça
(não de Thomas Bernhard)
achei boa ideia limpar a casa etc. Mudei lençóis, toalhas, tapetes. Arrumei e limpei a secretária, acho que pela primeira vez desde o Verão. Quando acabei olhei em volta e pensei,
– está tudo na mesma.
Apeteceu-me ouvir Van Morrison não sei porquê, e por isso pus o Van Morrison a tocar, e como já eram quase oito da noite achei que era uma boa altura para começar a cozinhar, e por isso comecei a cozinhar. Entretanto mandavam-me mensagens que alternavam entre o,
– boas entradas,
e o,
– que o próximo ano te traga etc,
não respondi a nenhuma.
Toda a gente se queixa que este ano foi uma merda e que o próximo há-de ser melhor, mas tenho a ideia de que no ano passado disseram a mesma coisa e por isso não consigo perceber o porquê de tantos sorrisos, de tanta festa. Quando ainda não era como sou esforçava-me imenso. Gritava,
– dez, nove, oito,
mas havia sempre uma altura, antes desse,
– sete, seis, cinco, 
em que alguém me perguntava,
– o que é que tens?,
e eu encolhia os ombros e dizia,
– nada,
apenas encolhia os ombros e dizia,
– nada, acho que não me apetece estar aqui.
Pus a comida no forno e achei que era uma boa altura para beber uma cerveja artesanal que me deram há dias. Deram-me duas garrafas. Provei a primeira e achei que era muito boa. Estava a pensar que devia guardar a segunda para uma ocasião especial enquanto punha a mesa. Pus a mesa para duas pessoas, pus um lugar ao meu lado, não por achar que fosses bater à porta de repente, a dizer,
– estou aqui,
não foi nada disso.
Não sei, apenas achei que devia pôr um prato a mais e uma faca e um garfo a mais e um copo a mais e um guardanapo a mais e puxar um pouco a cadeira para trás como se lá estivesses sentada. Pensei,
– isto visto de fora deve parecer o princípio de uma psicose, não posso contar isto a ninguém,
e agora estou a dizê-lo a toda a gente.
Depois pensei,
– que se fodam as ocasiões especiais,
e bebi a segunda cerveja artesanal. O jantar estava pronto e abri o champagne. Foi caro, estava bom, tal como o jantar. Olhei para o lado, para a cadeira, e pensei em ti, onde estarias agora, tu que me tinhas dito de manhã que ainda não sabias aonde ias passar o fim de ano, que estavas a considerar as opções. Depois percebi que estava a jantar com um prato vazio e senti-me realmente sozinho.
Acabei de jantar e acabei o champagne. Arrumei as coisas. Lavei a louça, etc. Estava tudo arrumado. Bebi café e abri uma garrafa de whisky de 25 anos. Sentei-me no sofá e o Van Morrison continuava a cantar. O whisky tinha sido muito caro mas era muito bom. Bebi outro. Deviam ser umas onze horas por esta altura e eu comecei a ficar com sono. Peguei no Suetónio, na Vida dos 12 Césares, é o meu livro de cabeceira, gosto em particular do capítulo sobre Calígula e por isso comecei a ler o capítulo sobre Calígula. Servi-me outro whisky.
A certa altura adormeci.
Foi um daqueles sonhos em que não existe a consciência de que se está a sonhar, e por isso tudo parece real, tudo parece a realidade mesmo que essa realidade seja estranha. Lembro-me que estava a andar na rua, à noite, num sítio que não conheço, sem ninguém, uma espécie de estrada vazia com árvores à volta. Apesar da situação não sentia qualquer medo ou desconforto e mesmo quando comecei a ouvir tiros continuei a olhar em volta com a mesma tranquilidade, a pensar,
– olha, tiros, muitos tiros.
Nessa altura, no sonho, percebi que não eram tiros que estava a ouvir, mas sim fogo-de-artifício e por isso, muito naturalmente, olhei para cima para ver o fogo-de-artifício, mas o céu estava negro, sem estrelas, sem nuvens, sem fogo-de-artifício, e enquanto olhava para cima, no sonho, pensava,
– estou cego.
Acordei com essa sensação, de que estava cego, e o sonho era tão real que houve aquele momento de dúvida e de alívio, em que eu pensei,
– ainda bem que não estou cego.
Tinha falhado a meia-noite, tinha falhado o,
– quatro, três, dois,
levantei-me do sofá e fui à varanda para ver o fogo-de-artifício, o fogo-de-artifício da realidade. Na varanda ao lado estavam os vizinhos de copo na mão. Quis evitar brindes à distância e sorrisos e,
– que este ano seja etc,
e por isso voltei para dentro sem brindes nem sorrisos. Bebi outro whisky. Calei o Van Morrison e carreguei no aleatório. Sentei-me à mesa outra vez, com o copo à minha frente e a cadeira vazia ao meu lado. Entretanto chegavam mais mensagens e telefonemas, não respondi a ninguém, não atendi ninguém. Apenas deixei que o telefone tocasse até se calar. Fiquei assim um bocado, a ouvir o telefone a tocar com mensagens e telefonemas.
Pela uma da manhã uma amiga-que-não-posso-dizer-o-nome-porque-tem-namorado tocou à campainha, disse,
– porque é que não atendes o telefone?,
assim que abri a porta.
Ela sabia que eu ia passar o fim de ano sozinho e acho que teve pena de mim.
Bebemos a outra garrafa de champagne. Depois, enquanto ela se vestia, achei que era simpático da minha parte perguntar-lhe se ela queria cá dormir, ela sorriu e disse que não, que eu sabia que ela não podia cá dormir e que ela sabia que eu não queria que ela cá dormisse.
– Porque é que não vais sair?,
 disse ela,
– estás sempre ao balcão de um bar e hoje estás em casa, vai divertir-te.
– Eu estou a divertir-me,
disse eu.
Depois ela disse,
– tenho de me ir embora,
e eu disse,
– eu sei, obrigado por teres vindo.
Depois ela foi-se embora.
Depois bebi outro whisky. E depois fui dormir. E não consegui dormir porque os meus vizinhos parece que ainda estão a gritar,
– um, zero.
Têm um filho anormal que está sempre a mexer os dedos das mãos e a gritar,
– paaaaaaaaaaai,
e,
– mããããããããããe.
Eu tenho pena dele. Mas não consigo dormir porque ele continua aos gritos e por isso neste momento não tenho muita pena dele. Neste momento tenho pena de mim.
E por isso saio de casa e vou sair e encontro gente e desejo um bom ano a toda a gente e toda a gente me deseja um bom ano e estamos a rir e a brindar e a contar histórias divertidas e todos nós somos sorrisos e gargalhadas e muito barulho.
Mas às tantas, num momento, desvio o olhar e deixo de rir e de falar muito alto, deixo de estar ali e alguém me pergunta,
– o que é que tens?,
e eu respondo,
– nada,
eu respondo assim,
– nada.
Eu digo,
– estava a pensar numa cadeira vazia.
Depois,
não sei,
acabei por vir para casa.