domingo, 4 de junho de 2017

FAKE EMPIRE

E ele continuou,
mas ainda assim, como qualquer mau jogador de póquer que leu Kipling, conseguiu levantar-se da mesa sem pestanejar, sem insultar deus, o destino ou o universo. Apenas se dirigiu para a porta sem apressar o passo. Disse,
– boa noite,
ao segurança e, cá fora, por causa do vento, lembrou-se de Cesariny, daquela história de levantar a gola de peludo (ou de veludo?). Não se riu de nada, nem sequer dele próprio, não se riu de coisa nenhuma, apenas procurou o carro e pensou,
– pelo menos tenho gasolina para voltar para casa.
Pôs as mãos no volante antes de rodar a chave e ouviu uma voz dentro da cabeça que lhe disse,
– bem, agora sim, perdeste tudo,
mas ainda tinha vinte euros na carteira
(isto não foi há muito tempo).
Foi até um bar onde o conheciam, este mesmo bar onde estamos agora, e sentou-se ao balcão como nós estamos agora sentados, até acho que ele estava sentado exactamente nesse lugar e pediu um whisky como acabámos de pedir. Se pedisse para pagar noutro dia o barman teria dito,
– sabe que aqui está sempre à vontade,
mas não pediu para pagar noutro dia, pediu mais três whiskys e no final pagou a conta com os vinte euros que lhe restavam na carteira.
Durante esse tempo não falou com ninguém nem olhou para ninguém. Apenas se manteve quieto, no canto do balcão, a olhar para o whisky e, por vezes, para o relógio. Não acho que estivesse a pensar no dinheiro que perdeu ou na jogada em que perdeu tudo, não acho que estivesse a fazer contas ou a rever a última carta que saiu, a dama que deu a sequência ao inglês contra o par de ases que tinha de mão. Quando se tem um par de ases, amigo, tem de se apostar tudo, mas nem sempre se ganha, às vezes perde-se para uma sequência que sai com a dama na última carta.
(Sabe, nesta coisa das histórias, das histórias que se contam, ninguém se lembra de quem não paga a conta. E por isso ele pagou o que devia e ficou sem dinheiro, ficou sem nada.)
Apesar dos quatro whiskys levantou-se sem cambalear e caminhou para a porta. Lá fora estava um vento terrível, chovia também, tal como hoje.
Claro que ninguém sabia disto na altura,
diz ele,
ninguém sabia que ele tinha perdido o dinheiro todo, que a mulher o tinha deixado, que já não tinha emprego. Era apenas alguém no fim da noite, a beber whisky e a olhar para o relógio. Podia ser um qualquer, podia ser qualquer um de nós quando parou à porta e se virou para trás e nos disse,
– meus senhores, boa noite a todos.
E eu estou sentado e estou a ouvir esta história, estou a tentar ouvir esta história, a maior parte das vezes aceno com a cabeça, mas o velho é surdo e de cada vez que eu digo,
– não me diga,
ele diz,
– hã?
e continua a história como se eu não tivesse dito nada.
Há uma miúda que não tira os olhos de mim. Olho para os olhos dela e penso,
– vou levar-te para a cama,
mas depois penso em ti, no que estarás a fazer, com quem poderás estar. E por isso acendo um cigarro e bebo o que resta do copo.
 Ele pergunta se quero outro. Eu digo que sim e o Rafael serve-me mais um whisky.
– E então, o que é que lhe aconteceu?,
pergunto eu,
– hã?
diz ele.
– O que é que lhe aconteceu, ao homem do casino, atirou-se da Boca do Inferno ou qualquer coisa parecida?
(Eu continuo a olhar para a miúda e ela para mim.)
E depois ele diz qualquer coisa que eu não ouço,
e eu,
– hã?

terça-feira, 23 de maio de 2017

DIRTY REALISM

E estou ali, abraçado a ti, não te vejo há não sei quanto tempo e talvez por isso me apeteça chorar, mas não choro. Há uma rapariga sentada numa mesa, estava a olhar para mim há bocado, ficou espantada quando te abraçaste a mim, deve ter achado que eu era um daqueles que nunca morre, que vive eterno sentado ao balcão de um bar, sem falar com ninguém, sem conhecer ninguém. Mas eu levantei-me quando passaste por mim, e é tão estranho, apetece-me ao mesmo tempo desaparecer e que nunca me largues, mas nem eu vou desaparecer nem o abraço que prolongas pode durar para sempre. As coisas agora são diferentes, o tempo passa, as coisas mudam. Eu raramente te olho nos olhos porque não consigo, e tu apertas a tua mão no meu braço e encostas a cabeça ao meu peito como se fosse a coisa mais normal do mundo, e é a coisa mais normal do mundo, mesmo que não seja, porque quando encostas a cabeça no meu peito eu suspendo a minha vida e penso,
– nunca fui tão feliz,
mesmo sabendo que, a seguir, quando largas o meu braço e olhas para mim, já não com a cabeça no meu peito, apenas tu a olhares para mim, a cabeça já não encostada ao peito e tu a rires-te e a dizer,
– Mike,
(gosto quando me chamas,
– Mike,
e sei que sabes que eu gosto que me chames,
– Mike,)
somos apenas duas pessoas distantes uma da outra, tu ali e eu aqui, tu à procura e eu à espera. Somos o que somos. Não há nada a fazer, sabemos disso. Por muitos anos que passem, vai ser sempre assim. Eu a escrever e tu a leres o que eu escrevo, eu a chegar a casa e a escrever sobre ti, por muitos anos que passem, por muitas pessoas que passem, por muitas vidas que passem, não vou conseguir não fazer isso, não vou conseguir chegar a casa e não escrever sobre ti, não vou conseguir deixar de dizer,
– amo-te,
mesmo que não o diga ao teu lado, abraçado a ti, mesmo que o afogue num abraço, porque sei que não o queres ouvir.
Depois falamos da vida, falamos do que nos acontece, falamos de coisas e de outras coisas. Não falei sobre não conseguir escrever e tu não falaste sobre não conseguir amar. Pareces feliz, e eu gosto de te ver feliz, não me preocupo em saber se estás a fingir ou não, gosto de olhar para ti e continuar a ver o teu sorriso. Gosto de ver que ele não desapareceu, que ele continua, que ele há-de sempre continuar, mesmo que seja a fingir. É estranho falar contigo. É estranho saber a tua vida, é estranho perguntar,
– e tu, como estás?
e ver-te encolher os ombros. Não sei. É estranho não fazer parte da tua vida. É estranho olhar para as pessoas que estão ao teu lado e não perceber o que é que elas estão lá a fazer, não perceber o que será que elas têm que eu não tenho, não perceber se fui eu que fiz tudo mal ou se foi o mundo inteiro que se juntou para me empurrar.
De certa forma, nas últimas semanas, tenho tido a tendência para acreditar mais na segunda hipótese. Falo com poucas pessoas, às vezes estou com esta ou com aquela, às vezes janto fora com amigos, às vezes, cada vez menos, alguém me telefona para saber como estou e, às vezes, à noite, quando tudo parece que vai desaparecer, penso em ti – nunca ajuda.
Depois fui-me embora. Isto foi há três dias, acho. 

terça-feira, 18 de abril de 2017

HOME SWEET HOME

A maior parte das vezes estou sozinho. De manhã durmo sozinho, acordo tarde e ligo a televisão, vejo as notícias à espera daquele dia em que aconteceu realmente qualquer coisa marcante, vinte bombas atómicas que foram lançadas sobre o Médio Oriente, a primeira comunicação com uma civilização extraterrestre, a descoberta da cura para o cancro, mas é raro acontecer alguma coisa. Não como grande coisa ao almoço, às vezes nem sequer como porque não me apetece comer, não tenho fome e como não tenho fome e não tenho quem me obrigue a comer, apenas não como. À tarde passeio sozinho, às vezes vou até Cascais, não é sempre, é só às vezes, a pé, e de vez em quando sento-me numa esplanada onde peço uma água das pedras e um café cheio. Não levo nenhum livro para ler nem um caderno e uma caneta que me dêem um ar sofisticado de quem vai para uma esplanada de Cascais na esperança de ser o próximo vencedor de um prémio literário. Não. Não faço nada disso. A maior parte das vezes estou apenas sozinho a olhar para as pessoas. As crianças, sobretudo, fazem-me rir, principalmente quando vão com a cara ao chão porque nem sequer conseguem perceber como é que se corre, como é que se anda. Eu a beber a minha água, as crianças a enfiarem a testa na calçada e os pais a levantarem-se da mesa, aflitos, a pegarem nelas ao colo, a dizerem,
– pronto, já passou,
como se não soubessem que isso ia acontecer. Depois volto para casa, venho devagar, ando devagar. Demoro muito tempo. Às vezes o telefone toca e a maior parte delas eu atendo, as pessoas têm sido muito simpáticas, atenciosas, acabam sempre a conversa a dizer,
– se precisares de alguma coisa, diz,
e eu respondo,
– preciso de uma máquina do tempo que me leve de volta para 1999, tens uma máquina do tempo que me leve de volta para 1999?
– que idade tinhas na altura?,
perguntam as pessoas,
– era muito novo e muito estúpido,
digo eu.
À noite faço o jantar, ponho dois pratos na mesa porque nunca se sabe, pode haver um dia em que me venhas bater à porta, e não quero que julgues que me esqueci que estou à tua espera, não quero que aches que me esqueci de ti se me vieres bater à porta. E é isso. Depois lavo a loiça e depois vou à rua beber café. Também bebo um whisky, às vezes dois ou três. Há dias em que venho acompanhado para casa, mas por esta hora digo-lhes,
– preciso de ficar sozinho, preciso de escrever, não consigo escrever se estiveres aí deitada, não consigo escrever se houver sequer uma respiração ao meu lado e por isso preciso que te vás embora, tens aqui dinheiro para o táxi, mesmo que sustenhas a respiração não vai funcionar, mesmo que estejas quieta e calada não vou conseguir, desculpa, tens mesmo de te ir embora,
como acabei agora de dizer à S., que não só é casada como o marido foi uma das pessoas que me telefonou no outro dia a dizer,
– se precisares de alguma coisa, diz.
E é pena ele não ter uma máquina do tempo que me leve de volta para 1999, na altura fui feliz, na altura não dizia às pessoas para se irem embora, na altura dizia para elas ficarem, na altura dizia-te assim,
– amo-te,
e as pessoas acreditavam em mim, hoje é tudo mais complicado, hoje nem sequer há como voltar para casa sem ser sozinho, sempre sozinho.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

THE UGLY PEOPLE VS THE BEAUTIFUL PEOPLE

Acho que estou calado há demasiado tempo e por isso vou falar, estou farto de estar calado, de ouvir as pessoas a dizer,
– o importante agora é estares calado,
mas parece que há um ano que estou calado mesmo que não esteja calado há um ano, mesmo que afinal só tenha passado um mês, mesmo que pareça um ano, ou mais de um ano, muito mais do que um ano porque, entretanto, neste mês que passou, nas muitas coisas que aconteceram, as melhores e as piores foram as pessoas, sempre as pessoas, e não estamos habituados a isso, as coisas são lentas, as coisas demoram tempo, mas, nestas coisas todas que aconteceram neste mês, houve pessoas que ficaram e outras que se foram embora. E é bom, e é importante, é importante para mim, serem mais as que ficaram do que as que foram, mas mesmo assim não foi fácil, e mesmo assim não é fácil, há sempre uma história, alguém que ouviu isto ou aquilo, alguém que tem a certeza que as coisas se passaram de uma certa maneira. Ainda ontem, por exemplo, deram-me um abraço, uma pessoa que nunca tinha ido além do,
– estás bom?,
e de um meio sorriso, e deu-me um abraço como se me conhecesse há anos e tivéssemos partilhado histórias de infância e juventude,
– estás vivo,
disse ela,
– tinham-me dito que te tinhas matado, que te tinhas enforcado em casa, que os bombeiros tinham encontrado o teu corpo suspenso no ar e que a tua família e os teus amigos e toda a gente não falava disso por vergonha,
– não,
disse eu enquanto pensava no Mark Twain,
– os boatos sobre a minha morte foram exagerados,
disse eu, e ri-me, ela não percebeu e não se riu,
– e de resto?,
disse ela.
E é isso, é tudo uma questão de perspectiva, de relativizar as coisas, ela diz,
– e de resto?,
e eu penso,
– bem, não estou morto, por isso nem tudo está a correr mal,
e por isso digo,
– tudo na mesma.
Mas é mentira, não está tudo na mesma, está tudo diferente, está tudo diferente desde que te conheci.
Como não quero falar sobre coisas más, coisas que me fazem vomitar – não – coisas que me fizeram vomitar e pessoas que vomitei, vou falar sobre ti. Ia agora falar dos teus olhos e do teu cabelo, de como pareces levitar sobre todos nós. Ia falar do teu sorriso.
Disse hoje ao Pedro,
– sabes como é que eu sou, quando é para travar é com o travão de mão, quando é para acelerar é com o turbo,
ele riu-se, eu também, ele disse,
– tem cuidado, amigo,
e eu, como sempre, não vou ter cuidado nenhum, porque no meio desta merda toda, no meio desta chafurdice, neste esgoto a céu aberto que tresanda a merda e a esgoto, no meio disto tudo,
encontrei-te.

sábado, 4 de março de 2017

IN THE BLEAK MID-WINTER (3)

Começa agora.
Isto é uma introdução: no início de bright lights, big city, Jay McInerney punha o narrador a escrever uma carta à mulher que amava. A carta começava da maneira que todas as cartas começam,
– Dear Amanda,
(ela chamava-se Amanda)
mas o narrador tinha carregado nas teclas erradas da máquina de escrever e quando olhou para o papel percebeu que tinha escrito,
– Dead Amanda,
em vez de,
– Dear Amanda.
Só começa agora.   
Afinal não passaram cinco dias, passaram nove dias. Passaram nove dias até que eu dissesse o que tinha a dizer, passaram nove dias até que aparecesse o momento certo, o momento certo em que eu olhasse para o céu e dissesse à Jani e ao David,
já não sinto nada, já passou tudo, está tudo bem, nem sequer vou voltar a falar do assunto. Claro que vou voltar a falar sobre o assunto, mas vai ser diferente, já é diferente, como se tudo fosse no passado, como se tudo fosse um dia, algures, lá atrás, mesmo que tenha passado pouco tempo, mesmo que tenha passado pouco tempo vai parecer que foi tudo há muitos anos, e que nem sequer me lembro bem de como tudo aconteceu, de como as coisas começaram e de como tudo acabou.
E foi hoje. Foi hoje a seguir ao ensaio geral. Fizemos o ensaio geral e foi estranho porque, não sei, parece que o tempo passou de outra maneira, não é que andássemos para trás, não é isso, não foi andar para trás no tempo, nem a consciência de que se calhar só temos estes dois dias e mais nada, que depois destes dois dias no Porto vamos arrumar o Minotauro numa gaveta e seguir em frente. Não foi isso, não foi nada disso. Acho que foi mais a sensação de estamos noutro sítio, de que somos outras pessoas, de que isto faz parte do passado e não do presente. Acho que foi isso, um anacronismo, como se estivéssemos fora do tempo a tentar ser o que já não somos, a tentar viver uma vida que já não somos nós. E não vale a pena viver uma vida que já não existe, não vale a pena tentar viver uma coisa que agora é outra coisa.
O ensaio acabou e ficámos cá fora a fumar um cigarro. Eles não estavam felizes, eu sabia que eles não estavam felizes, mas continuei sem dizer nada, continuei a andar de um lado para o outro com o cigarro na mão porque sabia que o David ia dizer,
– mas vais dizer alguma coisa, ou não?,
e foi então que eu olhei para o céu, foi nessa altura que atirei fora o cigarro, olhei para o céu e disse,
já não sinto nada, já passou tudo, está tudo bem, nem sequer vou voltar a falar do assunto. Claro que vou voltar a falar sobre o assunto, mas vai ser diferente, já é diferente, como se tudo fosse no passado, como se tudo fosse um dia, algures, lá atrás, mesmo que tenha passado pouco tempo, mesmo que tenha passado pouco tempo vai parecer que foi tudo há muitos anos, e que nem sequer me lembro bem de como tudo aconteceu, de como as coisas começaram e de como tudo acabou.
E foi assim que acabou. Foi assim que tudo acabou. Tenho pena que não tenhas percebido e que nunca me tenhas percebido,
– talvez daqui a dez anos,
disse a Jani.
Fim.
Isto é um epílogo: eu sei que há uma parte de mim que quer que amanhã apareças de surpresa, sei que nunca vou conseguir matar essa parte de mim, sei isso tudo, que há uma parte de mim que vai estar a olhar para a porta e que mesmo sabendo que não vais aparecer, que nem sequer pensaste nisso, que nem sequer pensaste em aparecer, vai desejar que o faças, que o fizesses, e vai entristecer-se quando a porta se fechar e perceber que isso não aconteceu. Isto é só amanhã, mas vai acontecer. E está tudo bem, não há problema nenhum nisso porque também sei que essa parte de mim vai morrer mais um pouco amanhã, como morreu hoje, e que vai ficar cada vez mais pequena, cada vez mais pequena até desaparecer,
– a meio do Inverno gelado,
disse ele que sou eu.

sexta-feira, 3 de março de 2017

IN THE BLEAK MID-WINTER (2)

O que mais ouço agora são as gaivotas – não sei bem o que se chama ao que as gaivotas dizem, a mim parecem-me guinchos, vou chamar-lhes guinchos – o que mais ouço agora são os guinchos das gaivotas e Nick Cave, não que uma coisa tenha a ver com a outra, mas é o que tenho ouvido, os álbuns antigos do Nick Cave e os guinchos das gaivotas.
Talvez tenha a ver com o filho do Nick Cave, que morreu com 15 anos quando caiu de um penhasco, estava ali, a passear, e caiu não sei quantos metros do topo do penhasco para o chão, deve ter escorregado ou então tropeçou nalguma coisa. Acho que tem a ver com isso e com as gaivotas que não param de sobrevoar aos guinchos a varanda do nosso quarto, como se fôssemos um barco de pesca cheio de peixes mortos, uma traineira que regressa ao porto cheia de peixes mortos e gaivotas a guinchar sobre ela. Acho que é isso, que tenho ouvido os álbuns antigos do Nick Cave para tentar perceber se ele sabia o que lhe ia acontecer mesmo que não soubesse o que lhe ia acontecer, se ele, de alguma maneira, sentia a mesma coisa que eu sinto quando olho para cima, na varanda do nosso quarto, enquanto ouço o David dizer,
– foda-se,
e lá em cima, as gaivotas,
– foda-se, parece que vem aí um terramoto ou um tsunami, parece que vai ser o fim do mundo daqui a nada, que um terramoto e um tsunami vão dar cabo disto tudo, desta merda toda,
estávamos a fumar um cigarro na varanda, isto foi há bocado, no fim da noite, depois de sairmos os dois do Café au Lait,
– isto são só paneleiros,
e decidirmos que já não vamos ao Plano B,
– vou mas é decorar texto,
diz o David.
– vou mas é matar-me, que é isso que eu faço de cada vez que leio esta merda, e só tenho 22 anos.
E rimo-nos.
A Jani estava a dormir porque estava cansada, tinha-me dito,
– Mike, vê se percebes uma coisa,
antes de eu sair de casa,
– vê se percebes uma coisa muito simples,
disse ela, e depois disse-me uma coisa muito simples e acho que a seguir só não me deu uma chapada porque eu disse,
– não,
tal como eu disse,
– não
quando o Dinarte, ontem, quando veio cá jantar, ele e o Daniel, me disse assim,
– e tu, como é que estás, ainda andas apaixonado por aquela puta?,
e fez-se um silêncio,
– pita,
disse o Daniel,
– hã?,
disse o Dinarte.
e o Daniel,
– não é puta, é pita.
Não sei.
Confundo as histórias. Acho que foi assim, mas talvez não tenha sido assim, talvez eu tenha escrito agora puta em vez de pita, o “u” e o “i” estão ao lado um do outro no teclado, talvez tenha apenas carregado nas teclas erradas, talvez seja só isso, eu a carregar nas teclas erradas, eu a carregar sempre nas teclas erradas enquanto as gaivotas guincham sobre a minha cabeça e a Jani, que entretanto acordou e foi ter connosco à varanda, diz,
– parece que vai tudo desaparecer,
ela diz assim,
– foda-se, parece que vai tudo desaparecer.

quinta-feira, 2 de março de 2017

IN THE BLEAK MID-WINTER (1)

E por isso corremos. Corremos e corremos. Estamos sempre a correr. Às vezes corremos para conseguir chegar a algum lado, às vezes corremos porque estamos a fugir de alguma coisa. Eu não sei qual das duas coisas estou a fazer, não sei se estou a correr para conseguir chegar a algum lado ou se estou a correr para fugir de alguma coisa. Sei que estou a correr, que estamos a correr outra vez. Estamos sempre a correr, como se não fosse possível viver devagar, como se não fosse possível estar quieto ou apenas não querer chegar a algum lado porque já chegámos onde queremos chegar ou porque nada nos assusta e não temos de fugir. Mas isso quando acontece é nos filmes, na vida continuamos a querer chegar a algum lado ou continuamos a fugir de alguma coisa. E por isso corremos e continuamos a correr. Não paramos, continuamos a correr.
Do princípio.
Por esta hora, há três dias, estava sentado ao balcão de um bar. E estava bem, estava bem, sentado ao balcão de um bar enquanto as horas passavam. Depois fui para casa. Tinha de me levantar cedo e pensei em ir para a cama. Depois peguei no telemóvel, olhei para o telemóvel e pensei,
– não,
e depois atirei-o contra a parede e o telemóvel partiu-se aos bocados.
Passaram-se umas horas e estava bem. Era já de manhã e estava a passear num jardim e nada acontecia e como nada acontecia estava tudo bem. Acho que estava tudo calmo à minha volta e por isso eu também estava assim, calmo. De repente começou a soar um alarme, eu achei que era um alarme, e estranhei, estranhei ouvir um alarme porque como olhava em volta e nada parecia estar a acontecer, não havia sentido para aquele alarme soar tão alto e tão intenso, e por isso eu pensei,
– talvez não seja um alarme, talvez eu esteja a sonhar e este alarme seja a campainha da porta, talvez seja o David a tocar à campainha porque não tenho despertador e ontem destruí o telemóvel.
E depois abri os olhos e estava deitado na cama e era o David a tocar à campainha. Eu levanto-me da cama, eu abro a porte e ele olha para mim e diz,
– tens o telefone desligado, já viste que horas são?
E por isso corremos. Corremos e apanhamos a Jani e continuamos a correr, passamos os vermelhos todos e todos os limites de velocidade. Vamos para o Porto. Vamos para o Porto outra vez e por isso corremos porque não queremos ficar aqui, eu não quero ficar aqui.
De alguma maneira conseguimos ir e a primeira coisa em que pensamos quando estamos a chegar é que está tudo na mesma mesmo que não estejamos na mesma. Passou-se quase um ano e muita coisa aconteceu. Estou a repetir-me. Passou-se um ano e estamos diferentes, mas estamos no mesmo quarto, no mesmo sítio.
Isto foi há dois dias.
À noite, o David diz-me,
– não sei como aguentas,
a Jani ficou a dormir e nós fomos, fomos para qualquer lado. A Sofia telefona-lhe e ele fala com a Sofia. Eu tenho inveja dele. Ele senta-se à minha frente e eu pergunto,
– então, está tudo bem?,
e ele diz,
– sim,
e eu tenho inveja dele, tenho inveja desse,
– sim,
que ele diz, tal como tenho inveja da Jani quando ela me diz que é bom quando encontramos alguém que quer o mesmo que nós, que pensa da mesma maneira, que vê e olha para as coisas da mesma maneira, que, etc, até eu perguntar,
– estás feliz?,
mesmo sabendo a resposta, mesmo sabendo qual é a reposta que ela vai dizer, mesmo sabendo que ela vai dizer,
– sim.
e que esse,
– sim,
é o absoluto contrário do meu,
– não.
E depois continuamos. Já passaram três dias. Estou na casa de banho do Aduela e olho em frente, leio,
– I love you, honeybear,
e acho que não é coincidência, acho que não é coincidência alguém ter escrito,
– I love you, honeybear,
numa casa de banho do Porto enquanto eu estou a mijar e a olhar em frente.
E depois eu saio da casa de banho e sento-me ao lado do David e ele diz,
– não sei como aguentas,
e eu também não sei, não sei como aguento. Mas aguento, vou aguentando.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

STRAIGHT TO YOU

E daqui a cinco dias, no Porto, mais ou menos por esta hora, vou olhar para o céu e vou dizer à Jani e ao David,
– já não sinto nada, já passou tudo, está tudo bem, nem sequer vou voltar a falar do assunto. Claro que vou voltar a falar sobre o assunto, mas vai ser diferente, já é diferente, como se tudo fosse no passado, como se tudo fosse um dia, algures, lá atrás, mesmo que tenha passado pouco tempo, mesmo que tenha passado pouco tempo vai parecer que foi tudo há muitos anos, e que nem sequer me lembro bem de como tudo aconteceu, de como as coisas começaram e de como tudo acabou.
Isto vai ser daqui a cinco dias, no Porto, longe daqui e longe de ti, muito longe de ti.
Vamos para o Porto outra vez, eu, a Jani e o David vamos para o Porto outra vez, e passou-se quase um ano desde que quase perdemos um comboio que nos ias levar para o Porto. E a nossa vida, a vida dos três, está muito diferente quase um ano depois, mas vamos voltar para lá, para fazer a mesma coisa que fizemos há quase um ano, vamos ao Porto para eu morrer.
Não comecei bem. Vou começar outra vez.
Vamos para o Porto e eles têm ensaiado em minha casa, a Jani e o David têm ensaiado em minha casa, eu deixo-lhes a chave de casa e vou dar aulas enquanto eles ensaiam em minha casa porque daqui a cinco dias vamos para o Porto onde vamos voltar a fazer o Minotauro. Eu não estou nos ensaios porque tenho de estar nas aulas, tenho um horário de merda e por isso tenho de estar nas aulas e não nos ensaios, e quando volto para casa no fim das aulas bato à porta de minha casa e ouço a Jani a dizer,
– quem é?,
e eu digo,
– sou eu,
mesmo que não saiba o que isso quer dizer.
– O que se passa contigo? Estás diferente, até a tua casa está diferente, olho para ti e estás diferente, olho para as paredes e estão diferentes, o que aconteceu?,
pergunta a Jani,
isto foi há quatro dias. O ensaio já tinha acabado e o David já se tinha ido embora, a Jani tinha ficado porque lhe apeteceu ficar e voltou a dizer,
– o que aconteceu?,
ela percebe estas coisas, não sei como, mas percebe-as. Ao jantar, depois de falarmos sobre ela, voltou a perguntar,
– o que aconteceu?,
e eu disse que há certas coisas que quando são feitas não podem ser desfeitas, eu disse assim,
– sabes, há certas coisas que quando são feitas não podem ser desfeitas, certas coisas que as pessoas fazem, e eu estou farto, farto de sofrer, farto de dar sem receber, eu acho que sou uma pessoa boa, eu acho que está na altura de ir para qualquer lado e começar tudo do zero outra vez, e pode ser no Porto ou noutro lado qualquer, pode ser em qualquer lado desde que seja longe dela,
– tu és uma pessoa boa, Mike,
diz a Jani,
– tem calma.                                                          
Isto foi há quatro dias.
Tem sido uma semana difícil. Quase não dormi, há cinco dias que quase não durmo, duas ou três horas no sofá, durmo duas ou três horas no sofá, às vezes menos, e depois vou dar aulas.
A seguir encontrei-te e foi bom encontrar-te, foi tão bom encontrar-te. Ficamos sempre a recordar o que aconteceu e o que podíamos ter sido. E, não sei, quando estou ali contigo parece que há uma maneira qualquer de o tempo voltar para trás e de as coisas serem diferentes. Mas não são, as coisas não são diferentes e continuam na mesma.
Isto foi há três dias.
Eu não te via há não sei quanto tempo, quase um ano ou mais de um ano e foi estranho encontrar-te nesta altura, foi estranho reencontrar um amor antigo na mesma altura em que estou a largar um amor recente. Foi estranho, mas foi bom. Há dez anos estive quase para apanhar um avião para Santorini para ir ter contigo, na altura estavas a passar férias com os teus pais, e eu pensei,
– vou apanhar um avião para Santorini e vou ter com ela, não sei onde ela está mas vou encontrá-la e quando a encontrar vou ajoelhar-me aos pés dela e dizer,
– estou aqui, sou eu, sei que tenho muitos defeitos, sei que não sou o melhor dos homens, mas amo-te como ninguém te há-de amar e a única coisa que quero na vida é fazer-te feliz, e é isso que vou fazer porque é a única coisa que sei fazer.
Mas eu não fui para Santorini. Fiquei em Lisboa. Fiquei em Lisboa a pensar no que poderia acontecer se apanhasse um avião para Santorini. E agora, há três dias, estamos a falar disso. Ela ri-se. Ela diz-me que está a pensar em casar com o namorado que já era namorado na altura de Santorini. Eu pergunto-lhe o que teria acontecido se eu tivesse ido ter com ela a Santorini. Ela ri-se outra vez. Ela pega na minha mão e diz que eu devia ter ido ter com ela a Santorini, e eu pergunto-lhe a mesma pergunta de sempre nestes últimos dez anos,
– como é que não ficámos juntos?,
e depois rimo-nos e eu digo que vou aparecer no casamento dela, que quando o padre disser,
– se alguém tem alguma coisa a dizer,
eu vou aparecer e vou gritar,
– Santorini,
mesmo sabendo, os dois, que não vou fazer isso.
Sim, meu amor, há coisas que quando são feitas não podem ser desfeitas, e há outras que não podem ser feitas quando foram desfeitas, e, por isso, adeus. Passaram cinco dias e já deves ter notado a diferença, que eu estou noutro lado, que te tirei de dentro de mim. Já não estou aqui, estou no Porto, a olhar para o céu e dizer à Jani e ao David,
– não sei o que hei-de fazer,
não,
não é isso,
não é nada disso.
Isto foi há cinco dias,
eu estava a morrer e o Pedro estava comigo, eu morto nos braços dele enquanto eu dizia,
– não sei o que hei-de fazer,
e depois ele disse,
– sabes, sim,
e depois ele largou-me e disse,
– sabes, sim.
E depois ele foi-se embora. E depois de ele se ir embora e eu ficar sozinho pensei no que havia de fazer. E percebi que só tinha uma coisa a fazer. E fui até à parede e comecei a tirar o tempo da parede. Não o arranquei nem o atirei violento contra o chão. Não. Apenas o tirei da parede. Apenas peguei nele e o tirei da parede. E enquanto tirava o tempo da parede pensava que, afinal, não tinha perdido grande coisa,
– apenas tempo,
pensei eu,
– e amor próprio e, às vezes, talvez alguma dignidade,
pensei eu,
– não é assim tanta coisa,
pensei eu,
– podia ter perdido muito mais.                                           

sábado, 18 de fevereiro de 2017

APAGAR O CÉU

Talvez não seja coincidência que tenha começado a perder a fé quando estou a ler os evangelhos. Não estou a falar de há muitos anos, na catequese, quando me ensinavam que o meu melhor amigo era Jesus e que a minha melhor amiga era Maria, não estou a falar disso, nem sequer sei quem são os meus melhores amigos, nem percebo essa expressão, melhor amigo ou melhor amiga, como se houvesse uns amigos melhores do que outros, como se disséssemos,
– sabes, eu sei que és um bom amigo, que te preocupas comigo quando eu estou na merda, que me telefonas uma vez por semana a perguntar, então, estás bem?, porque te preocupas realmente comigo, como naquele dia em que me emprestaste dinheiro para eu pagar a conta da luz e o aluguer da casa porque senão ficava às escuras em casa, ou, pior ainda, ficava sem casa e às escuras, e sei que não te devolvi o dinheiro e que nem sequer te agradeci, mas sabes que eu sou assim, não digo nada, não agradeço nada, apenas me deixo ir, como daquela vez em que me levaste às costas para casa porque eu estava tão bêbado que nem de gatas me conseguia arrastar na rua, tu a dizeres que eu tinha de ao menos fazer pouco barulho e eu a uivar estrada acima enquanto gritava o nome dela porque achava que ia morrer de amor.
– Morrer de amor,
diz ela,
– já ninguém morre de amor,
diz ela,
– que merda,
diz ela,
– que merda que já ninguém morra de amor,
enquanto olha para mim e diz,
– não percebo como é que ainda não caíste para o lado, a sério que não percebo, já devias ter caído para o lado há muito tempo, já devias estar estendido no chão, quieto, imóvel, com o coração parado porque ninguém aguenta tanta coisa sem morrer, ninguém sobrevive a essa intensidade que pões
(eu interrompo-a).
– Sim, eu sei disso tudo,
e depois calei-me e olhei em frente. Ela disse,
– vai falar com ela, estás a olhar em frente para quê?, não olhes para a frente, olha para trás, pára de torturar o guardanapo, pára de dizer,
– outro,
e de olhar em frente para a televisão, estás a ver o quê?, o que te interessa um jogo de futebol entre duas equipas argentinas às duas da manhã?, pára de
(eu interrompo-a outra vez).
Tenho a minha mão suspensa no ar e olho para ela. Eu digo,
– acho que não aguento mais, acho que não consigo mesmo aguentar mais. Até o meu corpo começa a rejeitar-me. Estou cansado. Estou demasiado cansado. Não consigo comer, não consigo dormir, e estou assim há dois anos. Há dois anos sem comer e há dois anos sem dormir. Vou levantar-me, vou vestir o casaco e quando chegar lá fora vou apagar o céu, é isso que vou fazer, apagar o céu como se ele não existisse, como se ele nunca tivesse existido.
– Apagar o céu,
disse ela,
– o que é que isso quer dizer?,
perguntou ela.
Estava a dizer que talvez não fosse coincidência que eu tenha começado a perder a fé agora que estou a ler os evangelhos. Estou, portanto, a falar de agora e não de há muitos anos na catequese. Não é como quando eu tinha uns cinco anos, quando me deram um rosário para a mão e me disseram,
– reza,
e eu olhei para os meus colegas da primária, todos ajoelhados com as mãos juntas e a cabeça baixa enquanto eu pensava,
– não faço parte disto, não tenho nada a ver com isto, nem sequer sei o que é isto, apenas estou a perder a fé na única coisa em que acredito,
disse eu.
– E isso quer dizer o quê?,
perguntas tu.
E eu paro. Estamos cá fora. Está frio. Eu aperto o casaco e olho para cima, olho para o céu. E depois eu apago céu. E depois eu digo,
– apaguei o céu,
e tu dizes,
– não, não faças isso.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

PALIMPSESTO

Tenho pensado em ti. Tenho sempre pensado em ti. Se estou a falar não estou a falar, se me estou a rir não me estou a rir, se estou sentado num banco de jardim a olhar para um casal que passeia de mãos dadas, não estou sentado num banco de jardim a olhar para um casal que passeia de mãos dadas, estou a pensar em ti.
Acho que começou outra vez, os dias a passar e eu sem saber o que fazer com eles, os dias cada vez mais longos e eu a olhar para eles como se fossem coisas que se repetem, cópias de cópias, apenas um acordar e um adormecer, e coisas que acontecem nesse intervalo e que me distraem,
– mas não muito,
digo eu quando as recordo, e que vão fazendo com que eu fale, com que me ria ou que me vá sentar num banco de jardim a olhar para um casal que se passeia de mãos dadas.
Sou apenas isto, eu sem vontade para nada e a pensar em ti, mesmo sabendo que o pior de tudo é pensar em ti, que o pior de tudo é acordar e abrir a porta de casa e ir dar aulas e voltar para casa e sentar-me no sofá e voltar para as aulas porque a hora de almoço já acabou e dar mais aulas e voltar para casa outra vez e pôr a chave na porta e estar tudo igual. E depois fazer o jantar e comer o jantar e ir para o ensaio e a seguir beber um copo não porque gosto de beber um copo mas apenas porque quero adiar esse momento em que volto a rodar a chave na fechadura de casa sabendo que tudo continua igual, eu a olhar para o escuro da casa e a pensar em ti, eu a pensar,
– se ao menos não pensasse em ti era apenas um homem a chegar a casa sozinho, podia ver televisão, ler um livro, ouvir música, podia escrever qualquer coisa, qualquer coisa que não fosse sobre ti. Podia apenas, não sei, deitar-me cedo, conseguir dormir, talvez poupar dinheiro para ir de férias no Verão.   
As pessoas dizem-me, as pessoas dizem-me assim,
– pelo menos fazes alguma coisa disso, mas
(há sempre um mas)
– está na altura de deixares isso.
– Bem,
disse eu,
– talvez isso seja o mesmo que pedir a uma tartaruga que se despache, que ande mais depressa e que se despache, e talvez isso não seja uma coisa boa, talvez isso não seja sequer uma coisa possível porque a tartaruga não consegue andar mais depressa, porque por muito que ela tente, por muito que se esforce, vai continuar lenta, a avançar lenta sem se despachar nem conseguir andar mais depressa,
e mesmo enquanto dizia isto estava a pensar em ti, no quanto sinto a tua ausência, no quanto o teu silêncio me domina.
Entretanto, hoje disseram-me assim,
– pelo menos tens 10 anos, pelo menos tens 10 anos à espera dela, eu nem isso tenho. Eu não tenho nada. Tenho um, até já, que me disseram da janela do carro. Só tenho isso e isso é muito pouco, isso não é nada.
E,
sabes,
(agora ia escrever o teu nome)
mesmo sendo tarde continuo a pensar em ti.

domingo, 29 de janeiro de 2017

I'LL BE YOUR MIRROR

– Vou ser o teu espelho, um reflexo do que és, caso não saibas o que és. Vou ser o vento, a chuva e o pôr-do-sol, vou ser a luz à entrada da tua porta para saberes que chegaste a casa,
cantava a Nico com os Velvet Underground faz hoje cinquenta anos, não faz cinquenta anos que eles lançaram o álbum, faz cinquenta anos que eles se juntaram todos, em estúdio, e gravaram a música ao fim de três takes. Deles os cinco, que lá estavam, em estúdio, morreram o Sterling Morrison, de linfoma, o Lou Reed, de cirrose hepática, e a Nico, de hemorragia cerebral, depois de ter tido um ataque cardíaco enquanto andava de bicicleta e ter batido com a cabeça no chão. O Jonh Cale e a Maureen Tucker ainda estão vivos, ele tem 74 anos e ela 72. E hoje, há cinquenta anos, gravaram juntos em Nova Iorque a música I’ll be your Mirror, que estou agora a ouvir e que vou continuar a ouvir até mais daqui a um bocado, quando acabar de escrever e decidir que não me vou deitar, que não me quero deitar, que a minha vida afinal é uma luta contra o sono, uma luta contra adormecer.
Lembrei-me disto porque no final do espectáculo temo-nos deixado ficar por ali, e eu tenho posto a tocar os Velvet Underground, não sei porquê tem-me dado para isso, para ouvir os Velvet Underground depois do espectáculo, até mesmo a seguir, quando regresso sozinho para casa de carro, e depois em casa também, já de madrugada, quando me sento e acrescento um dia na parede e suspiro e penso,
– dez anos não é nada, dez anos passam num instante. Disseste a ti próprio que esperavas dez anos, que até eras capaz de esperar mais do que isso, que esperavas até morrer, se fosse preciso, que mesmo depois de morto eras capaz de continuar a esperar, então não há nada a fazer a não ser esperar e esperar que não sejam dez anos, que seja um pouco menos, que seja talvez amanhã mesmo sabendo que não vai ser amanhã, o importante é ir marcando o tempo na parede, perceber como ele se demora, como os dias não são curtos nem longos, como eles têm exactamente a mesma duração, com os mesmos segundos e os mesmos minutos e as mesmas horas, e que no fim tudo se resume ao Lou Reed, com o médico a dizer depois do transplante de fígado,
– lamento, fizemos tudo o que pudemos, não há mais nada a fazer,
e o Lou Reed a acenar com a cabeça e a dizer que ia para casa, que se ia abraçar à mulher e esperar tranquilo pela morte,
ou a Nico inconsciente de manhã num hospital em Ibiza com um médico a dizer,
– isto é uma insolação,
e ela morta às oito da noite enquanto o filho lhe segurava na mão num hospital em Ibiza porque um médico diagnosticou uma hemorragia cerebral como uma insolação.
À tarde não vejo filmes, nem leio, nem vou ao café beber um café e sentar-me na esplanada a fingir que sou uma pessoa com tempo livre e que por isso passo a tarde no café a apanhar sol, nem sequer está sol, à tarde fico em casa sentado a olhar para o relógio, a deixar passar o tempo para que o tempo passe. Começo a achar que tudo o que digo é mal interpretado, e por isso deixo-me ficar calado a olhar para o relógio, a ver o tempo passar.
Ontem, depois do espectáculo, enquanto me sentava a fumar um cigarro e ouvia a Nico a dizer,
– vou ser o teu espelho, um reflexo do que és, caso não saibas o que és. Vou ser o vento, a chuva e o pôr-do-sol, vou ser a luz à entrada da tua porta para saberes que chegaste a casa,
olhei para ti e olhei para eles e pensei que daqui a cinquenta anos talvez de nós os cinco também sobrem apenas dois. Pensei que pela ordem natural das coisas eu vou ser o primeiro a ir e que isso não me incomoda, que isso não me incomoda nada, que apenas quero que me aconteça acontecer-me o mesmo que aconteceu ao Lou Reed quando o médico lhe disse,
 – não há mais nada a fazer.

domingo, 22 de janeiro de 2017

E TAMBÉM NÃO DEVE SER FÁCIL PARA ELE

É sempre desagradável quando entramos a meio de uma conversa que só depois percebemos ser sobre nós,
não que me esteja a lembrar de alguma situação em particular, mas,
por exemplo,
quando entramos num café e vamos ter com dois amigos que estão sentados ao balcão de costas para nós a falar animados um com o outro,
e olhamos para eles mesmo que eles não nos vejam e sorrimos sozinhos porque é sempre agradável entrar num café e encontrar dois amigos a falar animados um com o outro, mesmo que de costas para nós, a falar ao balcão, e ao aproximarmo-nos ouvimos o final de uma conversa, uma frase solta de alguém que diz,
– sim, ele está todo fodido,
ou,
– não sei o que se passa, mas alguma coisa se passa porque ele é mais transparente que a água das Maldivas (estive lá há dois anos e sei bem do que estou a falar, não há água mais límpida que aquela) e uma pessoa olha para ele e sabe logo o que se passa ali dentro, parece que lhe deitaram uma tonelada de petróleo pela garganta abaixo e que todo ele está a arder por dentro, parece que todo ele é um incêndio, que todo ele é madeira a arder, uma floresta queimada cheia de cinzas e fumo negro,
e é sempre nesse momento que colocamos a mão sobre os ombros  de cada um dos amigos e dizemos com um sorriso porque ainda não percebemos de quem é que se está a falar,
– quem é que está todo fodido?,
ou,
– quem é que é transparente como a água das Maldivas?,
e depois eles olham para nós e mudam tão depressa de expressão que é impossível não pensar,
– ah, a sério?
Também me acontece um amigo telefonar-me e perguntar,
– então, e tu, meu amigo, como estás?,
e eu, porque não tenho nada para fazer e me apetece rir um bocado, digo com um sorriso que ele não vê porque estamos a falar ao telefone,
– estou todo fodido,
e o David do outro lado,
– sim, já sei, já sei, estive ontem com o Pedro e com o Bruno, estivemos a noite toda a falar de ti, aliás, toda a gente anda a falar de ti, cada vez que encontro alguém falam-me de ti, de como estás na merda, de como mal te consegues levantar todos os dias, de como pareces ter morrido, de como és apenas um corpo que vagueia para um lado e para o outro sem saber para onde vai, fala-se sobretudo do teu olhar vazio, de ficares a olhar para a parede calado, tu parado a olhar para uma parede, tu tão parado quanto a parede quando toda a gente à tua volta fala e olha para ti à espera que fales também, alguns dizem mesmo que te esqueceste de morrer, que já morreste e que finges que continuas vivo, que tens sempre frio porque és um cadáver, que o teu coração parou há demasiado tempo para ainda bater,
depois ninguém falou e fez-se um silêncio outra vez.
Hoje, ao jantar, disseram-me assim,
– sabes, se eu nunca limpar os óculos vou ver sempre tudo turvo.
E eu disse,
– isso é uma metáfora?,
e o Pedro disse,
– acho que estou a ser bastante claro.
E fez-se outro silêncio.
E depois eu disse,
– Sabes,
olhei para ele e disse assim,
– detesto a palavra sempre, é muito raro usá-la, mas é a sexta vez que a estou a utilizar neste texto, sétima com esta última.
Não sei.
Talvez seja uma questão de tempo.
Ontem, por esta hora, sentei-me onde estou agora e escrevi uma frase, e foi uma boa frase, que explicava isto tudo, mas não a posso repetir, não a posso escrever agora porque,
anyway
como se diz agora,
who cares?

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

MEU AMOR

Sou daqueles que esconde mais do que mostra, sim, acho que sou daqueles que esconde mais do que mostra, daqueles que desvia o olhar e não quer dizer o teu nome, daqueles que não sabe sequer como dizer o teu nome, daqueles que não diz o teu nome com medo de ser transparente, tão transparente que toda a gente repara naquilo que toda a gente sabe e que toda a gente repara mesmo que eu esconda o teu nome e me esconda a mim, a desviar o olhar, a fingir que não existes, a fingir que és apenas um encolher de ombros quando me perguntam por ti ou a fingir-me distraído e ausente, a fingir-me espantado e indiferente,
– hã?
quando me dizem que te viram aqui e ali, que ouviram esta e aquela história, quando me dizem o teu nome e te insultam, e insultam-te a sério, porque se lembram de te insultar talvez apenas porque é tarde e porque, acho, olham para ti e pensam que não me mereces, não é que não me mereças, é não mereceres o que sinto por ti, é olharem para mim e acharem que eu sou um desperdício, que eu desperdiço sentimentos, que eu desperdiço os meus sentimentos todos contigo, que eu sou apenas um desperdício de sentimentos na pessoa errada, e por isso insultam-te, chamam-te puta e coisas piores, enquanto eu escondo mais do que mostro e encolho os ombros e digo,
– o que é que eu tenho a ver com isso?,
ao mesmo tempo que cada vez mais me sinto como a minha prima Francisca, que há quase dois anos, na carta de suicídio, escreveu,
– não me mato por amor, mas pela falta dele, do amor
(o meu tio, o pai da Francisca, a ler a carta de suicídio para a família enquanto toda a família chorava a morte da Francisca-encharcada-em-comprimidos e eu a pensar,
– devias ter pedido a minha ajuda, Francisca,  devias ter pedido a minha ajuda para rever o texto, que merda de frase).
À tarde, hoje, depois das aulas, fui fazer compras. Eu cheio de sacos para o jantar, um em cada braço, a balançar pela rua, a tentar chegar à porta do prédio sem deixar que um deles me mande ao chão. E penso em ti enquanto atravesso a estrada, penso em ti ao meu lado, a atravessar a estrada com sacos debaixo do braço. Penso em ti ao meu lado tão rápido quanto desapareces e eu fico a olhar para a estrada sem carros porque não está lá ninguém.
Daqui a uma horas, ao balcão de um bar, o Bruno há-de perguntar-me,
– e tu, estás bem?,
e eu hei-de responder enquanto olho para lado nenhum,
– sim.
Entro no prédio com os sacos e a pensar em ti. Atrás de mim aparece um homem com a filha. Eu olho para trás. Olho para eles. Eu digo,
– boa tarde,
e o homem, que deve ser mais novo que eu, diz,
– boa tarde,
a miúda, que deve ter uns cinco ou seis anos não diz nada, apenas olha para mim e para os sacos. Eu estou com vontade de desaparecer, de me ver em casa sem vizinhos nem elevadores, de apenas imaginar um mundo onde caminhas descalça à minha frente pela relva e eu olho para ti e tu dizes,
– Mike,
e eu a olho para ti e mostro muito mais do que escondo, e tu olhas para mim.
Entretanto,
na vida real,
estou no elevador com sacos de um lado e de outro e uma miúda de cinco ou seis anos a olhar para mim fixamente e a dizer-me, a dizer-me nos olhos enquanto eu olhava para ela,
– porque é que estás tão triste?,
e o pai que deve ser mais novo que eu,
– deixa o senhor em paz,
e o pai para mim,
– desculpe,
e eu com um sorriso,
– não faz mal,
e a miúda outra vez quando voltei a olhar para ela,
– porque é que estás tão triste?

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

ALL THE PLACES YOU CAN GO

Sabes,
quando ao fim de dez tentativas falhadas de enfiar a pen no computador decidi olhar com atenção para a pen e para o computador e percebi que estava há dez tentativas a tentar enfiar um isqueiro numa entrada USB pensei,
é normal que estas coisas aconteçam, é normal que tente enfiar isqueiros em computadores, estou tão cansado que tento enfiar uma pen que é um isqueiro no computador, estou tão cansado que não consigo dormir,
não estou cansado porque foi um dia longo,
não é isso,
estou cansado porque por muito que não queira tenho quase quarenta anos e de certa maneira parece que,
parece que tudo começa a ser mais difícil mesmo que achasse que ia ser mais fácil, e talvez por isso esteja tão cansado,
tão cansado que tenho a ideia de ir dormir, de me ir deitar, e depois levanto-me do computador e depois de doze horas,
desculpa,
depois de doze passos, dou por mim parado a meio da casa a olhar para as coisas sem saber o que estou ali a fazer, a meio da casa, com um isqueiro na mão, a olhar para a mesa, os livros, as paredes, e a pensar,
mas o que é que eu estou aqui a fazer, parado a meio da casa sem saber para onde ir?, será que ia buscar alguma coisa?, mas eu não estou à procura de nada por isso não há nada que eu fosse procurar, será que ia mijar?, mas não tenho vontade de mijar por isso não faz sentido estar aqui, de pé, a meio da casa, a pensar se vou mijar quando não tenho vontade de mijar ou a pensar se estou à procura de alguma coisa quando não tenho nada que procurar,
até tenho um isqueiro na mão,
e por isso volto a sentar-me ao computador e penso,
tenho tanto que fazer e tão pouca vontade para tudo, parece que tudo o que tenho para fazer é um desperdício do que sou, parece que tudo o que faço é apenas uma outra pessoa que eu inventei, a fazer aquilo que os outros acham que eu devo fazer, e por isso vou fazendo as coisas só porque sim, sem saber bem o que estou a fazer, sem ânimo nem vontade, continuar a continuar, olhar para o lado, quer seja sentado ao computador, a meio da casa ou deitado na cama e pensar,
é estranho estar aqui,
porque é estranho estar aqui, é tão estranho estar deitado na cama, como em pé a meio da casa, ou sentado ao computador, porque entretanto depois de não saber o que estava a fazer a meio da casa, voltei para o computador porque achei que era cedo para ir para a cama e depois de não conseguir enfiar o isqueiro numa entrada USB porque queria transferir uns ficheiros para uma pen, comecei a falar com o Pedro sobre a peça e sobre coisas que temos de tratar e às tantas ele disse uma coisa e eu disse outra coisa e depois ele disse,
– és demasiado poético,
como se dissesse que é normal  as coisas estarem como estão, que eu não tenho nada que  me queixar,
– és demasiado poético,
disse ele,
– ninguém percebe o que estás a dizer,
disse ele,
– eu estou a falar da tua vida, não estou a falar dos teus textos, os teus textos toda a gente percebe,
disse ele,
– estou a falar de ti,
disse ele,
– estou a falar da tua vida,
e entretanto adormeci,
talvez duas horas ou três horas a dormir, a dormir sentado à frente do computador enquanto o Pedro falava comigo e eu não respondia adormecido,,
ainda agora era cedo e ia deitar-me cedo, e de repente são duas ou três horas a mais, de repente são horas a menos e são coisas a mais,
tenho de perder este hábito de estar tão cansado que adormeço em qualquer lado,
no outro dia acordaram-me na portagem,
uma fila de carros atrás de mim a apitar e o homem da portagem aos gritos, a dizer para eu baixar o vidro, que eu tinha de pagar, que havia um hotel na auto-estrada e que era melhor ir para casa,
– és demasiado poético, vai para casa,
disse o homem da portagem,
não sei,
confundo as histórias,
e,
sabes,
talvez seja só isso, talvez seja mesmo só isso, só coisas que eu não consigo que aconteçam mesmo tendo esta certeza de que deviam acontecer,
como enfiar um isqueiro numa entrada USB.

domingo, 1 de janeiro de 2017

O ÚLTIMO DIA DO ANO

Das muitas citações que poderia fazer de Thomas Bernhard, talvez a que mais me agrade seja aquela que começa por,
– a vida é maravilhosa,
e depois continua com,
– mas o mais maravilhoso é pensar que ela tem um fim.
À tarde, enquanto estava a traduzir uma peça
(não de Thomas Bernhard)
achei boa ideia limpar a casa etc. Mudei lençóis, toalhas, tapetes. Arrumei e limpei a secretária, acho que pela primeira vez desde o Verão. Quando acabei olhei em volta e pensei,
– está tudo na mesma.
Apeteceu-me ouvir Van Morrison não sei porquê, e por isso pus o Van Morrison a tocar, e como já eram quase oito da noite achei que era uma boa altura para começar a cozinhar, e por isso comecei a cozinhar. Entretanto mandavam-me mensagens que alternavam entre o,
– boas entradas,
e o,
– que o próximo ano te traga etc,
não respondi a nenhuma.
Toda a gente se queixa que este ano foi uma merda e que o próximo há-de ser melhor, mas tenho a ideia de que no ano passado disseram a mesma coisa e por isso não consigo perceber o porquê de tantos sorrisos, de tanta festa. Quando ainda não era como sou esforçava-me imenso. Gritava,
– dez, nove, oito,
mas havia sempre uma altura, antes desse,
– sete, seis, cinco, 
em que alguém me perguntava,
– o que é que tens?,
e eu encolhia os ombros e dizia,
– nada,
apenas encolhia os ombros e dizia,
– nada, acho que não me apetece estar aqui.
Pus a comida no forno e achei que era uma boa altura para beber uma cerveja artesanal que me deram há dias. Deram-me duas garrafas. Provei a primeira e achei que era muito boa. Estava a pensar que devia guardar a segunda para uma ocasião especial enquanto punha a mesa. Pus a mesa para duas pessoas, pus um lugar ao meu lado, não por achar que fosses bater à porta de repente, a dizer,
– estou aqui,
não foi nada disso.
Não sei, apenas achei que devia pôr um prato a mais e uma faca e um garfo a mais e um copo a mais e um guardanapo a mais e puxar um pouco a cadeira para trás como se lá estivesses sentada. Pensei,
– isto visto de fora deve parecer o princípio de uma psicose, não posso contar isto a ninguém,
e agora estou a dizê-lo a toda a gente.
Depois pensei,
– que se fodam as ocasiões especiais,
e bebi a segunda cerveja artesanal. O jantar estava pronto e abri o champagne. Foi caro, estava bom, tal como o jantar. Olhei para o lado, para a cadeira, e pensei em ti, onde estarias agora, tu que me tinhas dito de manhã que ainda não sabias aonde ias passar o fim de ano, que estavas a considerar as opções. Depois percebi que estava a jantar com um prato vazio e senti-me realmente sozinho.
Acabei de jantar e acabei o champagne. Arrumei as coisas. Lavei a louça, etc. Estava tudo arrumado. Bebi café e abri uma garrafa de whisky de 25 anos. Sentei-me no sofá e o Van Morrison continuava a cantar. O whisky tinha sido muito caro mas era muito bom. Bebi outro. Deviam ser umas onze horas por esta altura e eu comecei a ficar com sono. Peguei no Suetónio, na Vida dos 12 Césares, é o meu livro de cabeceira, gosto em particular do capítulo sobre Calígula e por isso comecei a ler o capítulo sobre Calígula. Servi-me outro whisky.
A certa altura adormeci.
Foi um daqueles sonhos em que não existe a consciência de que se está a sonhar, e por isso tudo parece real, tudo parece a realidade mesmo que essa realidade seja estranha. Lembro-me que estava a andar na rua, à noite, num sítio que não conheço, sem ninguém, uma espécie de estrada vazia com árvores à volta. Apesar da situação não sentia qualquer medo ou desconforto e mesmo quando comecei a ouvir tiros continuei a olhar em volta com a mesma tranquilidade, a pensar,
– olha, tiros, muitos tiros.
Nessa altura, no sonho, percebi que não eram tiros que estava a ouvir, mas sim fogo-de-artifício e por isso, muito naturalmente, olhei para cima para ver o fogo-de-artifício, mas o céu estava negro, sem estrelas, sem nuvens, sem fogo-de-artifício, e enquanto olhava para cima, no sonho, pensava,
– estou cego.
Acordei com essa sensação, de que estava cego, e o sonho era tão real que houve aquele momento de dúvida e de alívio, em que eu pensei,
– ainda bem que não estou cego.
Tinha falhado a meia-noite, tinha falhado o,
– quatro, três, dois,
levantei-me do sofá e fui à varanda para ver o fogo-de-artifício, o fogo-de-artifício da realidade. Na varanda ao lado estavam os vizinhos de copo na mão. Quis evitar brindes à distância e sorrisos e,
– que este ano seja etc,
e por isso voltei para dentro sem brindes nem sorrisos. Bebi outro whisky. Calei o Van Morrison e carreguei no aleatório. Sentei-me à mesa outra vez, com o copo à minha frente e a cadeira vazia ao meu lado. Entretanto chegavam mais mensagens e telefonemas, não respondi a ninguém, não atendi ninguém. Apenas deixei que o telefone tocasse até se calar. Fiquei assim um bocado, a ouvir o telefone a tocar com mensagens e telefonemas.
Pela uma da manhã uma amiga-que-não-posso-dizer-o-nome-porque-tem-namorado tocou à campainha, disse,
– porque é que não atendes o telefone?,
assim que abri a porta.
Ela sabia que eu ia passar o fim de ano sozinho e acho que teve pena de mim.
Bebemos a outra garrafa de champagne. Depois, enquanto ela se vestia, achei que era simpático da minha parte perguntar-lhe se ela queria cá dormir, ela sorriu e disse que não, que eu sabia que ela não podia cá dormir e que ela sabia que eu não queria que ela cá dormisse.
– Porque é que não vais sair?,
 disse ela,
– estás sempre ao balcão de um bar e hoje estás em casa, vai divertir-te.
– Eu estou a divertir-me,
disse eu.
Depois ela disse,
– tenho de me ir embora,
e eu disse,
– eu sei, obrigado por teres vindo.
Depois ela foi-se embora.
Depois bebi outro whisky. E depois fui dormir. E não consegui dormir porque os meus vizinhos parece que ainda estão a gritar,
– um, zero.
Têm um filho anormal que está sempre a mexer os dedos das mãos e a gritar,
– paaaaaaaaaaai,
e,
– mããããããããããe.
Eu tenho pena dele. Mas não consigo dormir porque ele continua aos gritos e por isso neste momento não tenho muita pena dele. Neste momento tenho pena de mim.
E por isso saio de casa e vou sair e encontro gente e desejo um bom ano a toda a gente e toda a gente me deseja um bom ano e estamos a rir e a brindar e a contar histórias divertidas e todos nós somos sorrisos e gargalhadas e muito barulho.
Mas às tantas, num momento, desvio o olhar e deixo de rir e de falar muito alto, deixo de estar ali e alguém me pergunta,
– o que é que tens?,
e eu respondo,
– nada,
eu respondo assim,
– nada.
Eu digo,
– estava a pensar numa cadeira vazia.
Depois,
não sei,
acabei por vir para casa.