terça-feira, 15 de novembro de 2016

REPEAT

Então,
(tal como Vladimir e Estragon)
tenho passado os últimos dias
(uma semana, mais coisa menos coisa – talvez mais do que isso)
resumido a um,
– nothing to be done,
que normalmente traduzem por,
– nada a fazer,
mas que eu, aplicando-o à minha vida, traduziria por,
– nada a fazer apesar das muitas coisas que se fazem, como acordar, tomar os comprimidos, comer qualquer coisa e perceber que devia ter comido primeiro e só depois ter tomado os comprimidos porque supostamente atacam o estômago e ninguém quer estar doente de uma coisa e depois ficar ainda por cima com o estômago a arder, tomar um banho, vestir-me, ir dar aulas, voltar das aulas, deitar-me no sofá e dormir enrolado num cobertor porque tenho frio e acordar cheio de calor e olhar para o despertador e achar que são nove da manhã quando são nove da noite e pensar,
– tenho de tomar os quatro comprimidos que não tomei,
mas afinal são só dois porque afinal são nove da noite e não nove da manhã, e por isso levanto-me e tomo mais comprimidos e depois volto para o sofá e volto a dormir porque os comprimidos me dão sono e depois a mesma coisa às quatro da manhã a mesma coisa, e eu a pensar,
– nothing to be done,
(como Vladimir e Estragon)
enquanto me dispo e me deito na cama e adormeço entre o frio e o calor, já sem saber qual deles prefiro, já sem saber há quantos dias estou assim, sem ver ninguém, sem falar com ninguém, irritado se a campainha toca,
– volta noutro dia, daqui a muito tempo de preferência,
irritado se o telefone toca,
– não quero falar com ninguém, muito menos contigo.
E assim tem sido uma semana complicada,
(acho que consigo concordar com isso)
a dizer a mim mesmo enquanto decido continuar,
– um… dois… três...
quando tenho vontade de dizer,
– acho que desta vez não me safo.
No Hospital de Cascais deram-me uma pulseira vermelha, disse,
– gripe das aves,
quando me perguntaram quais os sintomas,
– ou isso ou ébola.
Cinco minutos depois um médico com máscara na cara e ar de médico sem fronteiras dizia-me que o meu problema eram as alergias,
– o seu problema são as alergias.
disse ele,
– alergias?,
disse eu,
– alergias a quê?
Depois receitou-me um anti-histamínico,
– isto é muito forte, tenha cuidado,
que eu comprei na farmácia e depois vim para casa e tomei os comprimidos e fui deitar-me no sofá à espera de sentir-me melhor.
Sonhei que nada acontecia na minha vida, que a minha vida era uma repetição constante de dias que se repetiam uns atrás dos outros, que acordava e adormecia com o mesmo entusiasmo, que quando alguma coisa me chamava a atenção era porque ouvia no rádio do carro enquanto ia comprar tabaco,
– o Leonard Cohen morreu, Miguel,
e eu a pensar,
– mas porque é que o gajo da rádio está a falar comigo?,
e sempre a pensar nisso, principalmente no elevador do prédio, quando não há mais nada para olhar a não ser o espelho,
– porque é que o gajo da rádio estava a falar comigo?,
e chegava a casa e percebia que o Leonard Cohen tinha morrido e que eu nem tinha percebido porque estava aqui fechado sem ver ninguém e sem falar com ninguém.
E depois o sonho acabava e eu acordava do sonho, ainda agora, agora mesmo, levantei-me e pensei,
– os comprimidos devem estar a fazer efeito.
Pensei,
– os comprimidos devem estar a fazer efeito, que bom, sou eu outra vez, sou eu outra vez sem sonhos estranhos e idas ao hospital depois das aulas. Mas mesmo assim, mesmo curado, mesmo sem alergias, mesmo sem sono e sem sonhos e com o Leonard Cohen morto, eu digo, digo assim em voz alta como se alguém me ouvisse,
(tal como Vladimir e Estragon)
– olha para mim, não há nada a fazer?

domingo, 6 de novembro de 2016

DINAMENE

– Ainda vais escrever?,  
pergunta ela.
Eu digo que não, que não vou escrever. Digo que o computador não funciona e que só tenho o portátil e que no portátil tenho de martelar nos acentos para ter acentos e martelar no espaço para ter espaços e martelar nas teclas todas para que saia qualquer coisa, porque se não sai tudo ao contrário ou não sai nada. Eu digo que amanhã tenho um dia longo, que vou almoçar a Lisboa com a minha mãe e que à noite dou um jantar em minha casa, que ainda tenho de ir às compras, que nem sequer sei o que vou fazer para o jantar. Eu digo que tudo isso me deixa irritado, eu digo que não vou escrever. 
Estamos os dois sentados ao balcão de um bar, eu paguei a conta, tu chegaste nem há meia hora, eu estava a olhar para o telefone, para um daqueles jogos que jogamos para passar o tempo quando estamos sozinhos de madrugada ao balcão de um bar - sou bom nisso, nesses jogos que jogamos para passar o tempo quando estamos sozinhos de madrugada ao balcão de um bar. E como estou de costas para a porta não te vejo entrar, mas quando o Francisco à minha frente diz do lado de lá do balcão,
– então, estás bem?,
de alguma maneira eu sabia que ia ver o teu rosto quando virasse a cara. E depois virei a cara. E depois vi-te. E ainda antes de sorrir e ainda antes de dizer,
– olá,
e ainda antes de começar a fingir que estar contigo aqui sentado ao balcão de um bar é a coisa mais normal do mundo, não conseguia parar de pensar no que eu parecia, não conseguia parar de pensar que eu era um tipo sozinho ao balcão de um bar a jogar um jogo no telemóvel e no quanto eu era,
 ridículo,
que foi o que tu pensaste mesmo que não o tenhas dito.
Depois falámos meia hora e eu paguei. Tu perguntaste-me se eu ainda ia escrever e mesmo tendo dito o contrário, estou aqui a martelar no espaço e nos acentos.
(e desinstalei o jogo.)
Estavas nervosa e disseste,
– tenho sonhado que vou morrer,
e eu apenas sorri porque a maior parte das vezes a única coisa que consigo fazer à tua frente é sorrir, mas não queria sorrir, até porque, se uma pessoa diz,
– acho que vou morrer,
e a outra sorri, parece que,
percebem?,
parece que ia ter gosto nisso. Estive para dizer,
– que engraçado, sabes que te chamam Dinamene?, sabes que às vezes algumas pessoas me dizem,  dizem-me assim,
– tens visto a tua Dinamene?,
ou,
– e a tua Dinamene, como é que vão as coisas?
As coisas, claro, não vão de maneira nenhuma. As coisas nunca vão de maneira nenhuma. Às vezes parece que morreste. Às vezes sento-me aqui, onde estou agora sentado, onde me sento todos os dias antes de me ir deitar, quando penso no que passou, quando penso no dia que passou, no que eu fiz, no que eu não fiz, no que aconteceu e no que não aconteceu, e às vezes, aqui sentado, a olhar para o tempo a passar ao meu lado ou para mim no mesmo sítio, e parece que morreste. Parece mesmo que morreste e que eu nem me apercebi, como naquele dia em que te sentaste ao meu lado ao balcão de um bar enquanto eu olhava para o telemóvel e o Francisco dizia,
– Então, estás bem?

Não.
Isto não é um bom final.
Um bom final é eu dizer que tudo isto faz parte de qualquer coisa, de um plano qualquer que nos ultrapassa e que, como dizia o Thom York,
 somos acidentes à espera de acontecer.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

PALÍNDROMO

Não ia começar assim, não ia começar desta maneira, não ia começar por dizer,
– não sei porque vou fazer isto. Não sei porque vou fazer isto outra vez, não quero fazer isto outra vez,
não era nada disto, não era assim. Ia começar de outra maneira. Ia começar comigo a dizer,
– não choveu o dia todo, mas tive essa sensação, de que choveu o dia todo, enquanto deitado no sofá olhava intermitente para o tecto, para a televisão, para o tapete, para o cinzeiro, para a tua fotografia na parede
(sim, entretanto há uma fotografia tua na parede)
para mim que continuava deitado no sofá e para o telefone que não parou de tocar com mensagens e e-mails e telefonemas e eu sem ver nenhum deles, eu intermitente entre o sofá e a varanda, entre a rua e o chão, o asfalto e o tapete, eu a olhar para o céu e a achar que parece que está a chover mesmo que não haja uma única nuvem e nem sequer uma gota de água que me caia no pescoço quando venho cá fora fumar um cigarro.
E depois, agora, ao fim do dia, enquanto olho para a parede à minha direita, onde o tempo se continua a acumular, onde o tempo não pára de crescer em post-its cor-de-rosa que marcam um, dois, três dias, etc, penso aqui sentado que talvez os dias e meses apenas se transformem em mais dias e mais meses, etc, que por muito tempo que passe, por muito que aconteça, vou sempre ficar aqui, parado, no fim da noite, a olhar para o tempo a passar enquanto as pessoas me telefonam e mandam mensagens a dizer coisas como,
– o que é feito de ti?
ou
– fodia-te agora.
Ela diz-me que esta história, esta história de amor, só resulta porque acaba mal, porque é incompleta. Ela diz que só é uma história de amor porque acabou mal, e por muito que eu diga que não é bem assim, que a história ainda não acabou, que eu acho que ainda não acabou, a verdade é que,
a verdade é que eu paro,
e paro mesmo. Paro e pergunto-me,
– o que é que estás a fazer?,
porque ultimamente parece que tudo converge para essa pergunta, para o que é que eu estou a fazer, parece que nada funciona e, ao mesmo tempo, nada funciona realmente: o computador, a televisão, a máquina de café, a minha cabeça.
[E depois eu disse, eu disse assim,
– não quero saber, não quero mesmo saber, faz o que tens a fazer, se é isso que achas que deves fazer
(e depois cortei umas coisas que tinha escrito porque achei que era demais, achei que as pessoas iam perceber o que eu queria dizer, e eu não quero que as pessoas percebam o que estou a dizer)
mesmo que seja isso que eu queira gritar quando saio à rua nas poucas vezes que saio à rua, nas poucas vezes em que vejo a luz do Sol ou a luz da Lua ou o brilho do dia ou o brilho da noite, ou
e depois ela disse,
– cala-te,
e eu calei-me.
Sim. Às vezes é isso que penso, quando à noite me deito e encosto a cabeça na almofada,
– que estúpido sou,
penso eu quando encosto a cabeça na almofada.]
Digamos que é estranho pensar em mim, digamos que é estranho pensar nas pessoas que me são próximas. A minha sobrinha, por exemplo, fez 19 anos na semana passada, talvez há mais tempo, não sei, mas seja há uma ou duas semanas, não interessa, é estranho ter uma sobrinha que tem 19 anos.
Houve uma festa. Disse a meio do almoço,
– é estranho teres 19 anos, lembro-me de ti quando nasceste, cabias nos meus braços, de olhos fechados porque estavas sempre de olhos fechados, e por isso é estranho olhar para ti e teres 19 anos e já não caberes nos meus braços e teres crescido e seres uma mulher e teres os olhos abertos. Que estranho, que estranho que tudo isto é. Ainda ontem fui para a cama com uma miúda da tua idade e, percebes?, há qualquer coisa de errado nisso, qualquer coisa, qualquer coisa de errado em mim.
E a minha sobrinha a olhar para mim, e toda a gente a olhar para mim, e eu calado a olhar para toda a gente.
E toda a gente se cala. E é estranho toda a gente se calar, ou talvez seja apenas aquele momento em que toda a gente se cala, aquele momento em que todas as vozes se deixam de ouvir, em que apenas se ouve um,
– Mike?,
da minha irmã enquanto olha para mim com os olhos abertos, como se perguntasse,
– estás parvo?,
porque há pessoas mais velhas ao nosso lado, pessoas mais velhas que felizmente dizem,
– hã?
quando alguém lhes diz alguma coisa ou quando eu digo o que costumo dizer
essas coisas desagradáveis
essas coisas
coisas

Então.

Então desta vez eu estava a pensar, eu estava a pensar assim, desta vez eu estava a pensar assim,
– quando eu era novo,
e deve ser isso, deve ser apenas isso, deve ser apenas a consciência desse,
– quando eu era novo,
uma coisa algures lá atrás, um tempo distante, eu sem este ar acabado, eu sem este aspecto de quem acabou de cair das escadas abaixo, eu sem marcar o tempo na parede, sem hesitar antes de fazer, sem pensar em ti, eu a deixar de pensar em ti, eu a encontrar uma maneira de nunca mais pensar em ti, nem agora nem depois, eu, apenas eu a dizer,
 and therein, as the Bard tell us, lies the rub.