terça-feira, 18 de abril de 2017

HOME SWEET HOME

A maior parte das vezes estou sozinho. De manhã durmo sozinho, acordo tarde e ligo a televisão, vejo as notícias à espera daquele dia em que aconteceu realmente qualquer coisa marcante, vinte bombas atómicas que foram lançadas sobre o Médio Oriente, a primeira comunicação com uma civilização extraterrestre, a descoberta da cura para o cancro, mas é raro acontecer alguma coisa. Não como grande coisa ao almoço, às vezes nem sequer como porque não me apetece comer, não tenho fome e como não tenho fome e não tenho quem me obrigue a comer, apenas não como. À tarde passeio sozinho, às vezes vou até Cascais, não é sempre, é só às vezes, a pé, e de vez em quando sento-me numa esplanada onde peço uma água das pedras e um café cheio. Não levo nenhum livro para ler nem um caderno e uma caneta que me dêem um ar sofisticado de quem vai para uma esplanada de Cascais na esperança de ser o próximo vencedor de um prémio literário. Não. Não faço nada disso. A maior parte das vezes estou apenas sozinho a olhar para as pessoas. As crianças, sobretudo, fazem-me rir, principalmente quando vão com a cara ao chão porque nem sequer conseguem perceber como é que se corre, como é que se anda. Eu a beber a minha água, as crianças a enfiarem a testa na calçada e os pais a levantarem-se da mesa, aflitos, a pegarem nelas ao colo, a dizerem,
– pronto, já passou,
como se não soubessem que isso ia acontecer. Depois volto para casa, venho devagar, ando devagar. Demoro muito tempo. Às vezes o telefone toca e a maior parte delas eu atendo, as pessoas têm sido muito simpáticas, atenciosas, acabam sempre a conversa a dizer,
– se precisares de alguma coisa, diz,
e eu respondo,
– preciso de uma máquina do tempo que me leve de volta para 1999, tens uma máquina do tempo que me leve de volta para 1999?
– que idade tinhas na altura?,
perguntam as pessoas,
– era muito novo e muito estúpido,
digo eu.
À noite faço o jantar, ponho dois pratos na mesa porque nunca se sabe, pode haver um dia em que me venhas bater à porta, e não quero que julgues que me esqueci que estou à tua espera, não quero que aches que me esqueci de ti se me vieres bater à porta. E é isso. Depois lavo a loiça e depois vou à rua beber café. Também bebo um whisky, às vezes dois ou três. Há dias em que venho acompanhado para casa, mas por esta hora digo-lhes,
– preciso de ficar sozinho, preciso de escrever, não consigo escrever se estiveres aí deitada, não consigo escrever se houver sequer uma respiração ao meu lado e por isso preciso que te vás embora, tens aqui dinheiro para o táxi, mesmo que sustenhas a respiração não vai funcionar, mesmo que estejas quieta e calada não vou conseguir, desculpa, tens mesmo de te ir embora,
como acabei agora de dizer à S., que não só é casada como o marido foi uma das pessoas que me telefonou no outro dia a dizer,
– se precisares de alguma coisa, diz.
E é pena ele não ter uma máquina do tempo que me leve de volta para 1999, na altura fui feliz, na altura não dizia às pessoas para se irem embora, na altura dizia para elas ficarem, na altura dizia-te assim,
– amo-te,
e as pessoas acreditavam em mim, hoje é tudo mais complicado, hoje nem sequer há como voltar para casa sem ser sozinho, sempre sozinho.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

THE UGLY PEOPLE VS THE BEAUTIFUL PEOPLE

Acho que estou calado há demasiado tempo e por isso vou falar, estou farto de estar calado, de ouvir as pessoas a dizer,
– o importante agora é estares calado,
mas parece que há um ano que estou calado mesmo que não esteja calado há um ano, mesmo que afinal só tenha passado um mês, mesmo que pareça um ano, ou mais de um ano, muito mais do que um ano porque, entretanto, neste mês que passou, nas muitas coisas que aconteceram, as melhores e as piores foram as pessoas, sempre as pessoas, e não estamos habituados a isso, as coisas são lentas, as coisas demoram tempo, mas, nestas coisas todas que aconteceram neste mês, houve pessoas que ficaram e outras que se foram embora. E é bom, e é importante, é importante para mim, serem mais as que ficaram do que as que foram, mas mesmo assim não foi fácil, e mesmo assim não é fácil, há sempre uma história, alguém que ouviu isto ou aquilo, alguém que tem a certeza que as coisas se passaram de uma certa maneira. Ainda ontem, por exemplo, deram-me um abraço, uma pessoa que nunca tinha ido além do,
– estás bom?,
e de um meio sorriso, e deu-me um abraço como se me conhecesse há anos e tivéssemos partilhado histórias de infância e juventude,
– estás vivo,
disse ela,
– tinham-me dito que te tinhas matado, que te tinhas enforcado em casa, que os bombeiros tinham encontrado o teu corpo suspenso no ar e que a tua família e os teus amigos e toda a gente não falava disso por vergonha,
– não,
disse eu enquanto pensava no Mark Twain,
– os boatos sobre a minha morte foram exagerados,
disse eu, e ri-me, ela não percebeu e não se riu,
– e de resto?,
disse ela.
E é isso, é tudo uma questão de perspectiva, de relativizar as coisas, ela diz,
– e de resto?,
e eu penso,
– bem, não estou morto, por isso nem tudo está a correr mal,
e por isso digo,
– tudo na mesma.
Mas é mentira, não está tudo na mesma, está tudo diferente, está tudo diferente desde que te conheci.
Como não quero falar sobre coisas más, coisas que me fazem vomitar – não – coisas que me fizeram vomitar e pessoas que vomitei, vou falar sobre ti. Ia agora falar dos teus olhos e do teu cabelo, de como pareces levitar sobre todos nós. Ia falar do teu sorriso.
Disse hoje ao Pedro,
– sabes como é que eu sou, quando é para travar é com o travão de mão, quando é para acelerar é com o turbo,
ele riu-se, eu também, ele disse,
– tem cuidado, amigo,
e eu, como sempre, não vou ter cuidado nenhum, porque no meio desta merda toda, no meio desta chafurdice, neste esgoto a céu aberto que tresanda a merda e a esgoto, no meio disto tudo,
encontrei-te.