Acho que estou calado há
demasiado tempo e por isso vou falar, estou farto de estar calado, de ouvir as
pessoas a dizer,
– o importante agora é
estares calado,
mas parece que há um ano
que estou calado mesmo que não esteja calado há um ano, mesmo que afinal só
tenha passado um mês, mesmo que pareça um ano, ou mais de um ano, muito mais do
que um ano porque, entretanto, neste mês que passou, nas muitas coisas que
aconteceram, as melhores e as piores foram as pessoas, sempre as pessoas, e não
estamos habituados a isso, as coisas são lentas, as coisas demoram tempo, mas,
nestas coisas todas que aconteceram neste mês, houve pessoas que ficaram e
outras que se foram embora. E é bom, e é importante, é importante para mim,
serem mais as que ficaram do que as que foram, mas mesmo assim não foi fácil, e
mesmo assim não é fácil, há sempre uma história, alguém que ouviu isto ou
aquilo, alguém que tem a certeza que as coisas se passaram de uma certa
maneira. Ainda ontem, por exemplo, deram-me um abraço, uma pessoa que nunca
tinha ido além do,
– estás bom?,
e de um meio sorriso, e
deu-me um abraço como se me conhecesse há anos e tivéssemos partilhado histórias
de infância e juventude,
– estás vivo,
disse ela,
– tinham-me dito que te
tinhas matado, que te tinhas enforcado em casa, que os bombeiros tinham
encontrado o teu corpo suspenso no ar e que a tua família e os teus amigos e
toda a gente não falava disso por vergonha,
– não,
disse eu enquanto pensava
no Mark Twain,
– os boatos sobre a minha
morte foram exagerados,
disse eu, e ri-me, ela não
percebeu e não se riu,
– e de resto?,
disse ela.
E é isso, é tudo uma questão
de perspectiva, de relativizar as coisas, ela diz,
– e de resto?,
e eu penso,
– bem, não estou morto,
por isso nem tudo está a correr mal,
e por isso digo,
– tudo na mesma.
Mas é mentira, não está
tudo na mesma, está tudo diferente, está tudo diferente desde que te conheci.
Como não quero falar sobre
coisas más, coisas que me fazem vomitar – não – coisas que me fizeram vomitar e
pessoas que vomitei, vou falar sobre ti. Ia agora falar dos teus olhos e do teu cabelo, de como pareces levitar sobre todos nós. Ia falar do teu sorriso.
Disse hoje ao Pedro,
– sabes como é que eu sou,
quando é para travar é com o travão de mão, quando é para acelerar é com o
turbo,
ele riu-se, eu também, ele
disse,
– tem cuidado, amigo,
e eu, como sempre, não vou
ter cuidado nenhum, porque no meio desta merda toda, no meio desta chafurdice,
neste esgoto a céu aberto que tresanda a merda e a esgoto, no meio disto tudo,
encontrei-te.
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