A maior parte das vezes
estou sozinho. De manhã durmo sozinho, acordo tarde e ligo a televisão, vejo as
notícias à espera daquele dia em que aconteceu realmente qualquer coisa
marcante, vinte bombas atómicas que foram lançadas sobre o Médio Oriente, a
primeira comunicação com uma civilização extraterrestre, a descoberta da cura
para o cancro, mas é raro acontecer alguma coisa. Não como grande coisa ao
almoço, às vezes nem sequer como porque não me apetece comer, não tenho fome e
como não tenho fome e não tenho quem me obrigue a comer, apenas não como. À tarde
passeio sozinho, às vezes vou até Cascais, não é sempre, é só às vezes, a pé, e
de vez em quando sento-me numa esplanada onde peço uma água das pedras e um café
cheio. Não levo nenhum livro para ler nem um caderno e uma caneta que me dêem
um ar sofisticado de quem vai para uma esplanada de Cascais na esperança de ser
o próximo vencedor de um prémio literário. Não. Não faço nada disso. A maior
parte das vezes estou apenas sozinho a olhar para as pessoas. As crianças,
sobretudo, fazem-me rir, principalmente quando vão com a cara ao chão porque
nem sequer conseguem perceber como é que se corre, como é que se anda. Eu a
beber a minha água, as crianças a enfiarem a testa na calçada e os pais a
levantarem-se da mesa, aflitos, a pegarem nelas ao colo, a dizerem,
– pronto, já passou,
como se não soubessem que
isso ia acontecer. Depois volto para casa, venho devagar, ando devagar. Demoro
muito tempo. Às vezes o telefone toca e a maior parte delas eu atendo, as
pessoas têm sido muito simpáticas, atenciosas, acabam sempre a conversa a
dizer,
– se precisares de alguma
coisa, diz,
e eu respondo,
– preciso de uma máquina
do tempo que me leve de volta para 1999, tens uma máquina do tempo que me leve
de volta para 1999?
– que idade tinhas na
altura?,
perguntam as pessoas,
– era muito novo e muito
estúpido,
digo eu.
À noite faço o jantar,
ponho dois pratos na mesa porque nunca se sabe, pode haver um dia em que me
venhas bater à porta, e não quero que julgues que me esqueci que estou à tua
espera, não quero que aches que me esqueci de ti se me vieres bater à porta. E é
isso. Depois lavo a loiça e depois vou à rua beber café. Também bebo um whisky,
às vezes dois ou três. Há dias em que venho acompanhado para casa, mas por esta
hora digo-lhes,
– preciso de ficar
sozinho, preciso de escrever, não consigo escrever se estiveres aí deitada, não
consigo escrever se houver sequer uma respiração ao meu lado e por isso preciso
que te vás embora, tens aqui dinheiro para o táxi, mesmo que sustenhas a
respiração não vai funcionar, mesmo que estejas quieta e calada não vou
conseguir, desculpa, tens mesmo de te ir embora,
como acabei agora de dizer
à S., que não só é casada como o marido foi uma das pessoas que me telefonou no
outro dia a dizer,
– se precisares de alguma
coisa, diz.
E é pena ele não ter uma máquina
do tempo que me leve de volta para 1999, na altura fui feliz, na altura não
dizia às pessoas para se irem embora, na altura dizia para elas ficarem, na
altura dizia-te assim,
– amo-te,
e as pessoas acreditavam
em mim, hoje é tudo mais complicado, hoje nem sequer há como voltar para casa
sem ser sozinho, sempre sozinho.
Passou um mês. Escreve.
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