sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

PALIMPSESTO

Tenho pensado em ti. Tenho sempre pensado em ti. Se estou a falar não estou a falar, se me estou a rir não me estou a rir, se estou sentado num banco de jardim a olhar para um casal que passeia de mãos dadas, não estou sentado num banco de jardim a olhar para um casal que passeia de mãos dadas, estou a pensar em ti.
Acho que começou outra vez, os dias a passar e eu sem saber o que fazer com eles, os dias cada vez mais longos e eu a olhar para eles como se fossem coisas que se repetem, cópias de cópias, apenas um acordar e um adormecer, e coisas que acontecem nesse intervalo e que me distraem,
– mas não muito,
digo eu quando as recordo, e que vão fazendo com que eu fale, com que me ria ou que me vá sentar num banco de jardim a olhar para um casal que se passeia de mãos dadas.
Sou apenas isto, eu sem vontade para nada e a pensar em ti, mesmo sabendo que o pior de tudo é pensar em ti, que o pior de tudo é acordar e abrir a porta de casa e ir dar aulas e voltar para casa e sentar-me no sofá e voltar para as aulas porque a hora de almoço já acabou e dar mais aulas e voltar para casa outra vez e pôr a chave na porta e estar tudo igual. E depois fazer o jantar e comer o jantar e ir para o ensaio e a seguir beber um copo não porque gosto de beber um copo mas apenas porque quero adiar esse momento em que volto a rodar a chave na fechadura de casa sabendo que tudo continua igual, eu a olhar para o escuro da casa e a pensar em ti, eu a pensar,
– se ao menos não pensasse em ti era apenas um homem a chegar a casa sozinho, podia ver televisão, ler um livro, ouvir música, podia escrever qualquer coisa, qualquer coisa que não fosse sobre ti. Podia apenas, não sei, deitar-me cedo, conseguir dormir, talvez poupar dinheiro para ir de férias no Verão.   
As pessoas dizem-me, as pessoas dizem-me assim,
– pelo menos fazes alguma coisa disso, mas
(há sempre um mas)
– está na altura de deixares isso.
– Bem,
disse eu,
– talvez isso seja o mesmo que pedir a uma tartaruga que se despache, que ande mais depressa e que se despache, e talvez isso não seja uma coisa boa, talvez isso não seja sequer uma coisa possível porque a tartaruga não consegue andar mais depressa, porque por muito que ela tente, por muito que se esforce, vai continuar lenta, a avançar lenta sem se despachar nem conseguir andar mais depressa,
e mesmo enquanto dizia isto estava a pensar em ti, no quanto sinto a tua ausência, no quanto o teu silêncio me domina.
Entretanto, hoje disseram-me assim,
– pelo menos tens 10 anos, pelo menos tens 10 anos à espera dela, eu nem isso tenho. Eu não tenho nada. Tenho um, até já, que me disseram da janela do carro. Só tenho isso e isso é muito pouco, isso não é nada.
E,
sabes,
(agora ia escrever o teu nome)
mesmo sendo tarde continuo a pensar em ti.

1 comentário:

  1. uma mistura de "dor no estômago" ao cruzar olhares, e de "belas recordações - mais que as más". é fácil. sempre foi fácil a dor. Mais fácil devia ser falar dela.

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