Talvez não seja
coincidência que tenha começado a perder a fé quando estou a ler os evangelhos.
Não estou a falar de há muitos anos, na catequese, quando me ensinavam que o
meu melhor amigo era Jesus e que a minha melhor amiga era Maria, não estou a
falar disso, nem sequer sei quem são os meus melhores amigos, nem percebo essa expressão,
melhor amigo ou melhor amiga, como se houvesse uns amigos melhores do que
outros, como se disséssemos,
– sabes, eu sei que és um
bom amigo, que te preocupas comigo quando eu estou na merda, que me telefonas
uma vez por semana a perguntar, então, estás bem?, porque te preocupas
realmente comigo, como naquele dia em que me emprestaste dinheiro para eu pagar
a conta da luz e o aluguer da casa porque senão ficava às escuras em casa, ou,
pior ainda, ficava sem casa e às escuras, e sei que não te devolvi o dinheiro e
que nem sequer te agradeci, mas sabes que eu sou assim, não digo nada, não
agradeço nada, apenas me deixo ir, como daquela vez em que me levaste às costas
para casa porque eu estava tão bêbado que nem de gatas me conseguia arrastar na
rua, tu a dizeres que eu tinha de ao menos fazer pouco barulho e eu a uivar
estrada acima enquanto gritava o nome dela porque achava que ia morrer de amor.
– Morrer de amor,
diz ela,
– já ninguém morre de
amor,
diz ela,
– que merda,
diz ela,
– que merda que já ninguém
morra de amor,
enquanto olha para mim e
diz,
– não percebo como é que
ainda não caíste para o lado, a sério que não percebo, já devias ter caído para
o lado há muito tempo, já devias estar estendido no chão, quieto, imóvel, com o
coração parado porque ninguém aguenta tanta coisa sem morrer, ninguém sobrevive
a essa intensidade que pões
(eu interrompo-a).
– Sim, eu sei disso tudo,
e depois calei-me e olhei
em frente. Ela disse,
– vai falar com ela, estás
a olhar em frente para quê?, não olhes para a frente, olha para trás, pára de
torturar o guardanapo, pára de dizer,
– outro,
e de olhar em frente para
a televisão, estás a ver o quê?, o que te interessa um jogo de futebol entre
duas equipas argentinas às duas da manhã?, pára de
(eu interrompo-a outra
vez).
Tenho a minha mão suspensa
no ar e olho para ela. Eu digo,
– acho que não aguento
mais, acho que não consigo mesmo aguentar mais. Até o meu corpo começa a
rejeitar-me. Estou cansado. Estou demasiado cansado. Não consigo comer, não
consigo dormir, e estou assim há dois anos. Há dois anos sem comer e há dois
anos sem dormir. Vou levantar-me, vou vestir o casaco e quando chegar lá fora
vou apagar o céu, é isso que vou fazer, apagar o céu como se ele não existisse,
como se ele nunca tivesse existido.
– Apagar o céu,
disse ela,
– o que é que isso quer
dizer?,
perguntou ela.
Estava a dizer que talvez
não fosse coincidência que eu tenha começado a perder a fé agora que estou a
ler os evangelhos. Estou, portanto, a falar de agora e não de há muitos anos na
catequese. Não é como quando eu tinha uns cinco anos, quando me deram um
rosário para a mão e me disseram,
– reza,
e eu olhei para os meus
colegas da primária, todos ajoelhados com as mãos juntas e a cabeça baixa enquanto
eu pensava,
– não faço parte disto,
não tenho nada a ver com isto, nem sequer sei o que é isto, apenas estou a
perder a fé na única coisa em que acredito,
disse eu.
– E isso quer dizer o
quê?,
perguntas tu.
E eu paro. Estamos cá
fora. Está frio. Eu aperto o casaco e olho para cima, olho para o céu. E depois
eu apago céu. E depois eu digo,
– apaguei o céu,
e tu dizes,
– não, não faças isso.
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