E daqui a cinco dias, no
Porto, mais ou menos por esta hora, vou olhar para o céu e vou dizer à Jani e
ao David,
– já não sinto nada, já
passou tudo, está tudo bem, nem sequer vou voltar a falar do assunto. Claro que
vou voltar a falar sobre o assunto, mas vai ser diferente, já é diferente, como
se tudo fosse no passado, como se tudo fosse um dia, algures, lá atrás, mesmo
que tenha passado pouco tempo, mesmo que tenha passado pouco tempo vai parecer
que foi tudo há muitos anos, e que nem sequer me lembro bem de como tudo
aconteceu, de como as coisas começaram e de como tudo acabou.
Isto vai ser daqui a cinco
dias, no Porto, longe daqui e longe de ti, muito longe de ti.
Vamos para o Porto outra
vez, eu, a Jani e o David vamos para o Porto outra vez, e passou-se quase um
ano desde que quase perdemos um comboio que nos ias levar para o Porto. E a
nossa vida, a vida dos três, está muito diferente quase um ano depois, mas
vamos voltar para lá, para fazer a mesma coisa que fizemos há quase um ano,
vamos ao Porto para eu morrer.
Não comecei bem. Vou
começar outra vez.
Vamos para o Porto e eles
têm ensaiado em minha casa, a Jani e o David têm ensaiado em minha casa, eu deixo-lhes
a chave de casa e vou dar aulas enquanto eles ensaiam em minha casa porque
daqui a cinco dias vamos para o Porto onde vamos voltar a fazer o Minotauro.
Eu não estou nos ensaios porque tenho de estar nas aulas, tenho um horário de
merda e por isso tenho de estar nas aulas e não nos ensaios, e quando volto
para casa no fim das aulas bato à porta de minha casa e ouço a Jani a dizer,
– quem é?,
e eu digo,
– sou eu,
mesmo que não saiba o que
isso quer dizer.
– O que se passa contigo?
Estás diferente, até a tua casa está diferente, olho para ti e estás diferente,
olho para as paredes e estão diferentes, o que aconteceu?,
pergunta a Jani,
isto foi há quatro dias. O
ensaio já tinha acabado e o David já se tinha ido embora, a Jani tinha ficado
porque lhe apeteceu ficar e voltou a dizer,
– o que aconteceu?,
ela percebe estas coisas,
não sei como, mas percebe-as. Ao jantar, depois de falarmos sobre ela, voltou a
perguntar,
– o que aconteceu?,
e eu disse que há certas
coisas que quando são feitas não podem ser desfeitas, eu disse assim,
– sabes, há certas coisas
que quando são feitas não podem ser desfeitas, certas coisas que as pessoas
fazem, e eu estou farto, farto de sofrer, farto de dar sem receber, eu acho que
sou uma pessoa boa, eu acho que está na altura de ir para qualquer lado e
começar tudo do zero outra vez, e pode ser no Porto ou noutro lado qualquer,
pode ser em qualquer lado desde que seja longe dela,
– tu és uma pessoa boa,
Mike,
diz a Jani,
– tem calma.
Isto foi há quatro dias.
Tem sido uma semana difícil.
Quase não dormi, há cinco dias que quase não durmo, duas ou três horas no sofá,
durmo duas ou três horas no sofá, às vezes menos, e depois vou dar aulas.
A seguir encontrei-te e
foi bom encontrar-te, foi tão bom encontrar-te. Ficamos sempre a recordar o que
aconteceu e o que podíamos ter sido. E, não sei, quando estou ali contigo
parece que há uma maneira qualquer de o tempo voltar para trás e de as coisas
serem diferentes. Mas não são, as coisas não são diferentes e continuam na
mesma.
Isto foi há três dias.
Eu não te via há não sei
quanto tempo, quase um ano ou mais de um ano e foi estranho encontrar-te nesta
altura, foi estranho reencontrar um amor antigo na mesma altura em que estou a
largar um amor recente. Foi estranho, mas foi bom. Há dez anos estive quase
para apanhar um avião para Santorini para ir ter contigo, na altura estavas a
passar férias com os teus pais, e eu pensei,
– vou apanhar um avião
para Santorini e vou ter com ela, não sei onde ela está mas vou encontrá-la e
quando a encontrar vou ajoelhar-me aos pés dela e dizer,
– estou aqui, sou eu, sei
que tenho muitos defeitos, sei que não sou o melhor dos homens, mas amo-te como
ninguém te há-de amar e a única coisa que quero na vida é fazer-te feliz, e é
isso que vou fazer porque é a única coisa que sei fazer.
Mas eu não fui para Santorini.
Fiquei em Lisboa. Fiquei em Lisboa a pensar no que poderia acontecer se
apanhasse um avião para Santorini. E agora, há três dias, estamos a falar disso.
Ela ri-se. Ela diz-me que está a pensar em casar com o namorado que já era
namorado na altura de Santorini. Eu pergunto-lhe o que teria acontecido se eu
tivesse ido ter com ela a Santorini. Ela ri-se outra vez. Ela pega na minha mão
e diz que eu devia ter ido ter com ela a Santorini, e eu pergunto-lhe a mesma
pergunta de sempre nestes últimos dez anos,
– como é que não ficámos
juntos?,
e depois rimo-nos e eu
digo que vou aparecer no casamento dela, que quando o padre disser,
– se alguém tem alguma
coisa a dizer,
eu vou aparecer e vou
gritar,
– Santorini,
mesmo sabendo, os dois,
que não vou fazer isso.
Sim, meu amor, há coisas
que quando são feitas não podem ser desfeitas, e há outras que não podem ser
feitas quando foram desfeitas, e, por isso, adeus. Passaram cinco dias e já
deves ter notado a diferença, que eu estou noutro lado, que te tirei de dentro
de mim. Já não estou aqui, estou no Porto, a olhar para o céu e dizer à Jani e
ao David,
– não sei o que hei-de
fazer,
não,
não é isso,
não é nada disso.
Isto foi há cinco dias,
eu estava a morrer e o
Pedro estava comigo, eu morto nos braços dele enquanto eu dizia,
– não sei o que hei-de
fazer,
e depois ele disse,
– sabes, sim,
e depois ele largou-me e disse,
– sabes, sim.
E depois ele foi-se
embora. E depois de ele se ir embora e eu ficar sozinho pensei no que havia de fazer. E percebi que só tinha uma coisa a fazer. E fui até à parede e comecei a tirar o tempo da parede. Não o arranquei nem o atirei violento contra o chão. Não. Apenas o tirei da parede. Apenas peguei nele e o tirei da parede. E enquanto tirava o
tempo da parede pensava que, afinal, não tinha perdido grande coisa,
– apenas tempo,
pensei eu,
– e amor próprio
e, às vezes, talvez alguma dignidade,
pensei eu,
– não é assim tanta coisa,
pensei eu,
– podia ter perdido muito mais.
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