Começa agora.
Isto é uma introdução: no
início de bright lights, big city, Jay McInerney punha o narrador a
escrever uma carta à mulher que amava. A carta começava da maneira que todas as
cartas começam,
– Dear Amanda,
(ela chamava-se Amanda)
mas o narrador tinha
carregado nas teclas erradas da máquina de escrever e quando olhou para o papel
percebeu que tinha escrito,
– Dead Amanda,
em vez de,
– Dear Amanda.
Só começa agora.
Afinal não passaram cinco
dias, passaram nove dias. Passaram nove dias até que eu dissesse o que tinha a
dizer, passaram nove dias até que aparecesse o momento certo, o momento certo
em que eu olhasse para o céu e dissesse à Jani e ao David,
– já não sinto nada, já passou tudo, está tudo bem, nem sequer vou
voltar a falar do assunto. Claro que vou voltar a falar sobre o assunto, mas
vai ser diferente, já é diferente, como se tudo fosse no passado, como se tudo
fosse um dia, algures, lá atrás, mesmo que tenha passado pouco tempo, mesmo que
tenha passado pouco tempo vai parecer que foi tudo há muitos anos, e que nem
sequer me lembro bem de como tudo aconteceu, de como as coisas começaram e de
como tudo acabou.
E foi hoje. Foi hoje a
seguir ao ensaio geral. Fizemos o ensaio geral e foi estranho porque, não sei,
parece que o tempo passou de outra maneira, não é que andássemos para trás, não
é isso, não foi andar para trás no tempo, nem a consciência de que se calhar só
temos estes dois dias e mais nada, que depois destes dois dias no Porto vamos
arrumar o Minotauro numa gaveta e seguir em frente. Não foi isso, não
foi nada disso. Acho que foi mais a sensação de estamos noutro sítio, de que
somos outras pessoas, de que isto faz parte do passado e não do presente. Acho
que foi isso, um anacronismo, como se estivéssemos fora do tempo a tentar ser o
que já não somos, a tentar viver uma vida que já não somos nós. E não vale a
pena viver uma vida que já não existe, não vale a pena tentar viver uma coisa
que agora é outra coisa.
O ensaio acabou e ficámos
cá fora a fumar um cigarro. Eles não estavam felizes, eu sabia que eles não
estavam felizes, mas continuei sem dizer nada, continuei a andar de um lado
para o outro com o cigarro na mão porque sabia que o David ia dizer,
– mas vais dizer alguma
coisa, ou não?,
e foi então que eu olhei
para o céu, foi nessa altura que atirei fora o cigarro, olhei para o céu e
disse,
– já não sinto nada, já passou tudo, está tudo bem, nem sequer vou
voltar a falar do assunto. Claro que vou voltar a falar sobre o assunto, mas
vai ser diferente, já é diferente, como se tudo fosse no passado, como se tudo
fosse um dia, algures, lá atrás, mesmo que tenha passado pouco tempo, mesmo que
tenha passado pouco tempo vai parecer que foi tudo há muitos anos, e que nem
sequer me lembro bem de como tudo aconteceu, de como as coisas começaram e de
como tudo acabou.
E foi assim que acabou.
Foi assim que tudo acabou. Tenho pena que não tenhas percebido e que nunca me
tenhas percebido,
– talvez daqui a dez anos,
disse a Jani.
– talvez daqui a dez anos,
disse a Jani.
Fim.
Isto é um epílogo: eu sei
que há uma parte de mim que quer que amanhã apareças de surpresa, sei que nunca
vou conseguir matar essa parte de mim, sei isso tudo, que há uma parte de mim
que vai estar a olhar para a porta e que mesmo sabendo que não vais aparecer,
que nem sequer pensaste nisso, que nem sequer pensaste em aparecer, vai desejar
que o faças, que o fizesses, e vai entristecer-se quando a porta se fechar e
perceber que isso não aconteceu. Isto é só amanhã, mas vai acontecer. E está
tudo bem, não há problema nenhum nisso porque também sei que essa parte de mim
vai morrer mais um pouco amanhã, como morreu hoje, e que vai ficar cada vez
mais pequena, cada vez mais pequena até desaparecer,
– a meio do Inverno gelado,
disse ele que sou eu.