sábado, 4 de março de 2017

IN THE BLEAK MID-WINTER (3)

Começa agora.
Isto é uma introdução: no início de bright lights, big city, Jay McInerney punha o narrador a escrever uma carta à mulher que amava. A carta começava da maneira que todas as cartas começam,
– Dear Amanda,
(ela chamava-se Amanda)
mas o narrador tinha carregado nas teclas erradas da máquina de escrever e quando olhou para o papel percebeu que tinha escrito,
– Dead Amanda,
em vez de,
– Dear Amanda.
Só começa agora.   
Afinal não passaram cinco dias, passaram nove dias. Passaram nove dias até que eu dissesse o que tinha a dizer, passaram nove dias até que aparecesse o momento certo, o momento certo em que eu olhasse para o céu e dissesse à Jani e ao David,
já não sinto nada, já passou tudo, está tudo bem, nem sequer vou voltar a falar do assunto. Claro que vou voltar a falar sobre o assunto, mas vai ser diferente, já é diferente, como se tudo fosse no passado, como se tudo fosse um dia, algures, lá atrás, mesmo que tenha passado pouco tempo, mesmo que tenha passado pouco tempo vai parecer que foi tudo há muitos anos, e que nem sequer me lembro bem de como tudo aconteceu, de como as coisas começaram e de como tudo acabou.
E foi hoje. Foi hoje a seguir ao ensaio geral. Fizemos o ensaio geral e foi estranho porque, não sei, parece que o tempo passou de outra maneira, não é que andássemos para trás, não é isso, não foi andar para trás no tempo, nem a consciência de que se calhar só temos estes dois dias e mais nada, que depois destes dois dias no Porto vamos arrumar o Minotauro numa gaveta e seguir em frente. Não foi isso, não foi nada disso. Acho que foi mais a sensação de estamos noutro sítio, de que somos outras pessoas, de que isto faz parte do passado e não do presente. Acho que foi isso, um anacronismo, como se estivéssemos fora do tempo a tentar ser o que já não somos, a tentar viver uma vida que já não somos nós. E não vale a pena viver uma vida que já não existe, não vale a pena tentar viver uma coisa que agora é outra coisa.
O ensaio acabou e ficámos cá fora a fumar um cigarro. Eles não estavam felizes, eu sabia que eles não estavam felizes, mas continuei sem dizer nada, continuei a andar de um lado para o outro com o cigarro na mão porque sabia que o David ia dizer,
– mas vais dizer alguma coisa, ou não?,
e foi então que eu olhei para o céu, foi nessa altura que atirei fora o cigarro, olhei para o céu e disse,
já não sinto nada, já passou tudo, está tudo bem, nem sequer vou voltar a falar do assunto. Claro que vou voltar a falar sobre o assunto, mas vai ser diferente, já é diferente, como se tudo fosse no passado, como se tudo fosse um dia, algures, lá atrás, mesmo que tenha passado pouco tempo, mesmo que tenha passado pouco tempo vai parecer que foi tudo há muitos anos, e que nem sequer me lembro bem de como tudo aconteceu, de como as coisas começaram e de como tudo acabou.
E foi assim que acabou. Foi assim que tudo acabou. Tenho pena que não tenhas percebido e que nunca me tenhas percebido,
– talvez daqui a dez anos,
disse a Jani.
Fim.
Isto é um epílogo: eu sei que há uma parte de mim que quer que amanhã apareças de surpresa, sei que nunca vou conseguir matar essa parte de mim, sei isso tudo, que há uma parte de mim que vai estar a olhar para a porta e que mesmo sabendo que não vais aparecer, que nem sequer pensaste nisso, que nem sequer pensaste em aparecer, vai desejar que o faças, que o fizesses, e vai entristecer-se quando a porta se fechar e perceber que isso não aconteceu. Isto é só amanhã, mas vai acontecer. E está tudo bem, não há problema nenhum nisso porque também sei que essa parte de mim vai morrer mais um pouco amanhã, como morreu hoje, e que vai ficar cada vez mais pequena, cada vez mais pequena até desaparecer,
– a meio do Inverno gelado,
disse ele que sou eu.

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