sexta-feira, 3 de março de 2017

IN THE BLEAK MID-WINTER (2)

O que mais ouço agora são as gaivotas – não sei bem o que se chama ao que as gaivotas dizem, a mim parecem-me guinchos, vou chamar-lhes guinchos – o que mais ouço agora são os guinchos das gaivotas e Nick Cave, não que uma coisa tenha a ver com a outra, mas é o que tenho ouvido, os álbuns antigos do Nick Cave e os guinchos das gaivotas.
Talvez tenha a ver com o filho do Nick Cave, que morreu com 15 anos quando caiu de um penhasco, estava ali, a passear, e caiu não sei quantos metros do topo do penhasco para o chão, deve ter escorregado ou então tropeçou nalguma coisa. Acho que tem a ver com isso e com as gaivotas que não param de sobrevoar aos guinchos a varanda do nosso quarto, como se fôssemos um barco de pesca cheio de peixes mortos, uma traineira que regressa ao porto cheia de peixes mortos e gaivotas a guinchar sobre ela. Acho que é isso, que tenho ouvido os álbuns antigos do Nick Cave para tentar perceber se ele sabia o que lhe ia acontecer mesmo que não soubesse o que lhe ia acontecer, se ele, de alguma maneira, sentia a mesma coisa que eu sinto quando olho para cima, na varanda do nosso quarto, enquanto ouço o David dizer,
– foda-se,
e lá em cima, as gaivotas,
– foda-se, parece que vem aí um terramoto ou um tsunami, parece que vai ser o fim do mundo daqui a nada, que um terramoto e um tsunami vão dar cabo disto tudo, desta merda toda,
estávamos a fumar um cigarro na varanda, isto foi há bocado, no fim da noite, depois de sairmos os dois do Café au Lait,
– isto são só paneleiros,
e decidirmos que já não vamos ao Plano B,
– vou mas é decorar texto,
diz o David.
– vou mas é matar-me, que é isso que eu faço de cada vez que leio esta merda, e só tenho 22 anos.
E rimo-nos.
A Jani estava a dormir porque estava cansada, tinha-me dito,
– Mike, vê se percebes uma coisa,
antes de eu sair de casa,
– vê se percebes uma coisa muito simples,
disse ela, e depois disse-me uma coisa muito simples e acho que a seguir só não me deu uma chapada porque eu disse,
– não,
tal como eu disse,
– não
quando o Dinarte, ontem, quando veio cá jantar, ele e o Daniel, me disse assim,
– e tu, como é que estás, ainda andas apaixonado por aquela puta?,
e fez-se um silêncio,
– pita,
disse o Daniel,
– hã?,
disse o Dinarte.
e o Daniel,
– não é puta, é pita.
Não sei.
Confundo as histórias. Acho que foi assim, mas talvez não tenha sido assim, talvez eu tenha escrito agora puta em vez de pita, o “u” e o “i” estão ao lado um do outro no teclado, talvez tenha apenas carregado nas teclas erradas, talvez seja só isso, eu a carregar nas teclas erradas, eu a carregar sempre nas teclas erradas enquanto as gaivotas guincham sobre a minha cabeça e a Jani, que entretanto acordou e foi ter connosco à varanda, diz,
– parece que vai tudo desaparecer,
ela diz assim,
– foda-se, parece que vai tudo desaparecer.

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