segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

IDENTIDADE

– E já alguma vez pensaste em assentar?,
 pergunta ela,
– ficar em casa, poupar dinheiro, olhar para as coisas com calma, olhar para ti com calma, pensar em filhos, férias e feriados, uma mulher ao teu lado e um filme para ver todos os dias e horas certas para ir dormir?
Ela faz anos. Estamos os dois sentados ao balcão de um bar, eu olho para ela, para os olhos dela. Houve uma discussão ainda agora, de repente havia muita gente e de repente toda a gente se foi embora. E eu digo que sim, eu olho para ela, para os olhos dela e digo que sim, que já pensei em assentar, eu digo que tenho passado o último ano a pensar nisso, eu digo,
– não,
eu digo,
–  não foi o último ano, na verdade passei os últimos dois anos a pensar nisso, os últimos dois anos a pensar em assentar, a pensar que devia assentar e talvez ter filhos, e talvez nesta altura do ano uma árvore de Natal com luzes a piscar quando chego a casa, e jantar à mesa acompanhado e não um prato em cima do colo no sofá, e talvez ter alguém a quem dizer,
– vamos passar um fim-de-semana a Dublin ou Praga ou Paris, as passagens estão baratas e eu ganho bem e etc.
Ela olha para mim. Ela pergunta,
– que idade tens?
Eu digo a minha idade e ela diz que se eu casar agora vou, muito provavelmente, ser feliz, que aos vinte anos ninguém é feliz e que as pessoas que se casam com a minha idade já conseguem ser felizes, ela diz que sabe o que está a dizer, ela diz,
– eu sei o que estou a dizer,
porque é o trabalho dela. Ela organiza casamentos e diz que os que resultam são os das pessoas com a minha idade e eu acho que ela me está a chamar velho, ou então que estou na meia-idade, como uma aluna me disse no outro dia,
– é a meia-idade,
depois de eu dizer que era velho para os novos e novo para os velhos.
Entretanto não tenho escrito. Acho que deixei de conseguir escrever. Os últimos meses têm-me dito isso, que não consigo escrever, que estou farto, que não aguento mais, que quero sossego e solidão, fazer brownies aos Domingos e receber amigos de quando em vez, quando lhes der jeito ou quando me der jeito, mas as pessoas encomendam-me textos, peças e não só, e eu digo que sim, eu digo que sim porque acho que ainda tenho dez anos à minha frente, depois, que se foda, mas dez anos tenho à minha frente, dez anos a escrever mesmo que não consiga escrever, dez anos a escrever mesmo que queira parar agora, mas dez anos é muito tempo, preferia assentar, preferia, etc
E depois paro. E depois olho para mim à noite. Bem, pode ser de dia. Ao almoço dizem-me que há um clube Miguel Graça. E eu digo,
– que estranho, no outro dia, ao balcão de um bar, talvez porque estivesse sentado ao lado da máquina registadora, um homem pegou na minha carteira em cima do balcão, e tudo isto sem querer, e pegou no meu dinheiro e pagou com o meu dinheiro até eu dizer,
– desculpe, essa carteira é minha.
 E o mais estranho é a carteira aberta, e eu a dizer,
– este sou eu,
a apontar para o meu cartão de cidadão (caducado desde Março),
– este sou eu, eu sou o Miguel Graça.


Sem comentários:

Enviar um comentário