segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

INTIMIDADE

Talvez seja do frio, talvez seja da chuva, talvez seja apenas estar constantemente a perder dinheiro em apostas de jogos de futebol no último minuto quando não percebo nada de futebol e muito menos de apostas, ou então chegar a casa e ver que a secretária continua igual desde que despedi a empregada, eu a procurar caneta e papel e a descobrir o computador no meio do chão, eu atafulhado de papéis e canetas e a descobrir o computador debaixo dos papéis e das canetas e eu a pensar,
– que raio de vida esta, em que encontro o computador no meio do chão quando tenho por cima de mim papéis e canetas quando na verdade o que procurava eram esses papéis e essas canetas que agora transbordam sobre mim.
Talvez sejam as luzes de Natal – uns sinos adornados com um laçarote, a badalar rua abaixo, para a esquerda e a para a direita, como fotogramas que juntos fazem,
– dlin dlão,
enquanto eu olho para eles e penso,
– que se fodam os sinos de Natal e os presépios e o jingle bells,
que se foda isso tudo,
penso,
enquanto desço rua abaixo,
eu a descer a rua,
eu a descer rua abaixo,
a olhar para trás,
eu a olhar para trás enquanto desço a rua, e eu a pensar,
– devia transformar-me em sal.
As pessoas dizem-me que eu perdi a alma,
– perdeste a alma,
as pessoas olham para mim e dizem,
– estás a repetir-te
ou,
– já disseste isso,
e eu olho para elas e concordo, eu digo,
– tens razão,
como quem diz,
– tens razão,
porque é isso mesmo que quero dizer, que elas têm razão, elas têm razão em dizer que eu perdi a alma porque quando rodo a chave na fechadura, quando ao abrir a porta de casa rodo a chave na fechadura, parece que
não sei
parece que sou apenas eu a rodar a chave na fechadura. Eu a rodar a chave  na fechadura e a ver o escuro à minha frente. Eu a acender a luz e o escuro ainda à minha frente. Eu a adormecer no escuro, eu a viver no escuro. Não foi sempre assim. Penso,
– não foi sempre assim,
e convenço-me de que isso é verdade, no escuro, abro os olhos e digo,
– não foi sempre assim,
mas se calhar foi sempre assim e eu apenas
 e eu apenas
 e eu apenas.
Talvez seja do frio, talvez seja porque ontem, quando dei a mão à minha irmã e lhe disse,
– vai ficar tudo bem,
ela a olhar para mim e eu a dizer-lhe,
– vai ficar tudo bem,
pensei que por muito que eu diga que vai ficar tudo bem não vai ficar tudo bem. Eu a pensar que vai tudo ser uma merda mesmo que ao pegar-lhe na mão eu diga,
– vai ficar tudo bem.
Talvez seja qualquer coisa. Talvez seja qualquer coisa qualquer, o frio, a chuva, as decorações de Natal, os sinos a badalar para um lado e para o outro, etc. Talvez seja qualquer coisa, uma coisa dessas, uma coisa dessas qualquer.
E agora escrevia assim,
– seja lá o que for,
e depois ia dormir.
Talvez seja isso, Talvez seja só isso, tu a dares-me a mão e a dizeres,
– vai ficar tudo bem.

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