Talvez
seja do frio, talvez seja da chuva, talvez seja apenas estar constantemente a
perder dinheiro em apostas de jogos de futebol no último minuto quando não
percebo nada de futebol e muito menos de apostas, ou então chegar a casa e ver
que a secretária continua igual desde que despedi a empregada, eu a procurar
caneta e papel e a descobrir o computador no meio do chão, eu atafulhado de papéis
e canetas e a descobrir o computador debaixo dos papéis e das canetas e eu a
pensar,
–
que raio de vida esta, em que encontro o computador no meio do chão quando
tenho por cima de mim papéis e canetas quando na verdade o que procurava eram
esses papéis e essas canetas que agora transbordam sobre mim.
Talvez
sejam as luzes de Natal – uns sinos adornados com um laçarote, a badalar rua
abaixo, para a esquerda e a para a direita, como fotogramas que juntos fazem,
–
dlin dlão,
enquanto
eu olho para eles e penso,
–
que se fodam os sinos de Natal e os presépios e o jingle bells,
que
se foda isso tudo,
penso,
enquanto
desço rua abaixo,
eu
a descer a rua,
eu
a descer rua abaixo,
a
olhar para trás,
eu
a olhar para trás enquanto desço a rua, e eu a pensar,
–
devia transformar-me em sal.
As
pessoas dizem-me que eu perdi a alma,
–
perdeste a alma,
as
pessoas olham para mim e dizem,
–
estás a repetir-te
ou,
–
já disseste isso,
e
eu olho para elas e concordo, eu digo,
–
tens razão,
como
quem diz,
–
tens razão,
porque
é isso mesmo que quero dizer, que elas têm razão, elas têm razão em dizer que eu
perdi a alma porque quando rodo a chave na fechadura, quando ao abrir a porta
de casa rodo a chave na fechadura, parece que
não
sei
parece
que sou apenas eu a rodar a chave na fechadura. Eu a rodar a chave na fechadura e a ver o escuro à minha frente. Eu
a acender a luz e o escuro ainda à minha frente. Eu a adormecer no escuro, eu a
viver no escuro. Não foi sempre assim. Penso,
–
não foi sempre assim,
e
convenço-me de que isso é verdade, no escuro, abro os olhos e digo,
–
não foi sempre assim,
mas
se calhar foi sempre assim e eu apenas
e eu apenas
e eu apenas.
Talvez
seja do frio, talvez seja porque ontem, quando dei a mão à minha irmã e lhe
disse,
–
vai ficar tudo bem,
ela
a olhar para mim e eu a dizer-lhe,
–
vai ficar tudo bem,
pensei
que por muito que eu diga que vai ficar tudo bem não vai ficar tudo bem. Eu a
pensar que vai tudo ser uma merda mesmo que ao pegar-lhe na mão eu diga,
–
vai ficar tudo bem.
Talvez
seja qualquer coisa. Talvez seja qualquer coisa qualquer, o frio, a chuva, as decorações
de Natal, os sinos a badalar para um lado e para o outro, etc. Talvez seja
qualquer coisa, uma coisa dessas, uma coisa dessas qualquer.
E
agora escrevia assim,
–
seja lá o que for,
e
depois ia dormir.
Talvez seja isso, Talvez seja só isso, tu a dares-me a mão e a dizeres,
– vai ficar tudo bem.
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