É sempre desagradável quando
entramos a meio de uma conversa que só depois percebemos ser sobre nós,
não que me esteja a
lembrar de alguma situação em particular, mas,
por exemplo,
quando entramos num café e
vamos ter com dois amigos que estão sentados ao balcão de costas para nós a
falar animados um com o outro,
e olhamos para eles mesmo
que eles não nos vejam e sorrimos sozinhos porque é sempre agradável entrar num
café e encontrar dois amigos a falar animados um com o outro, mesmo que de
costas para nós, a falar ao balcão, e ao aproximarmo-nos ouvimos o final de uma
conversa, uma frase solta de alguém que diz,
– sim, ele está todo
fodido,
ou,
– não sei o que se passa, mas
alguma coisa se passa porque ele é mais transparente que a água das Maldivas (estive
lá há dois anos e sei bem do que estou a falar, não há água mais límpida que
aquela) e uma pessoa olha para ele e sabe logo o que se passa ali dentro,
parece que lhe deitaram uma tonelada de petróleo pela garganta abaixo e que
todo ele está a arder por dentro, parece que todo ele é um incêndio, que todo
ele é madeira a arder, uma floresta queimada cheia de cinzas e fumo negro,
e é sempre nesse momento que
colocamos a mão sobre os ombros de cada
um dos amigos e dizemos com um sorriso porque ainda não percebemos de quem é
que se está a falar,
– quem é que está todo
fodido?,
ou,
– quem é que é
transparente como a água das Maldivas?,
e depois eles olham para nós
e mudam tão depressa de expressão que é impossível não pensar,
– ah, a sério?
Também me acontece um
amigo telefonar-me e perguntar,
– então, e tu, meu amigo,
como estás?,
e eu, porque não tenho nada para fazer e me apetece rir um bocado, digo com um sorriso que ele não vê porque
estamos a falar ao telefone,
– estou todo fodido,
e o David do outro lado,
– sim, já sei, já sei,
estive ontem com o Pedro e com o Bruno, estivemos a noite toda a falar de ti,
aliás, toda a gente anda a falar de ti, cada vez que encontro alguém falam-me
de ti, de como estás na merda, de como mal te consegues levantar todos os dias,
de como pareces ter morrido, de como és apenas um corpo que vagueia para um
lado e para o outro sem saber para onde vai, fala-se sobretudo do teu olhar
vazio, de ficares a olhar para a parede calado, tu parado a olhar para uma
parede, tu tão parado quanto a parede quando toda a gente à tua volta fala e
olha para ti à espera que fales também, alguns dizem mesmo que te esqueceste de
morrer, que já morreste e que finges que continuas vivo, que tens sempre frio
porque és um cadáver, que o teu coração parou há demasiado tempo para ainda
bater,
depois ninguém falou e
fez-se um silêncio outra vez.
Hoje, ao jantar, disseram-me
assim,
– sabes, se eu nunca
limpar os óculos vou ver sempre tudo turvo.
E eu disse,
– isso é uma metáfora?,
e o Pedro disse,
– acho que estou a ser
bastante claro.
E fez-se outro silêncio.
E depois eu disse,
– Sabes,
olhei para ele e disse
assim,
– detesto a palavra sempre,
é muito raro usá-la, mas é a sexta vez que a estou a utilizar neste texto, sétima
com esta última.
Não sei.
Talvez seja uma questão de
tempo.
Ontem, por esta hora, sentei-me onde estou agora e escrevi uma frase, e foi uma boa frase, que explicava isto tudo, mas não a posso repetir, não a posso
escrever agora porque,
anyway
como se diz agora,
who cares?
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