terça-feira, 17 de janeiro de 2017

MEU AMOR

Sou daqueles que esconde mais do que mostra, sim, acho que sou daqueles que esconde mais do que mostra, daqueles que desvia o olhar e não quer dizer o teu nome, daqueles que não sabe sequer como dizer o teu nome, daqueles que não diz o teu nome com medo de ser transparente, tão transparente que toda a gente repara naquilo que toda a gente sabe e que toda a gente repara mesmo que eu esconda o teu nome e me esconda a mim, a desviar o olhar, a fingir que não existes, a fingir que és apenas um encolher de ombros quando me perguntam por ti ou a fingir-me distraído e ausente, a fingir-me espantado e indiferente,
– hã?
quando me dizem que te viram aqui e ali, que ouviram esta e aquela história, quando me dizem o teu nome e te insultam, e insultam-te a sério, porque se lembram de te insultar talvez apenas porque é tarde e porque, acho, olham para ti e pensam que não me mereces, não é que não me mereças, é não mereceres o que sinto por ti, é olharem para mim e acharem que eu sou um desperdício, que eu desperdiço sentimentos, que eu desperdiço os meus sentimentos todos contigo, que eu sou apenas um desperdício de sentimentos na pessoa errada, e por isso insultam-te, chamam-te puta e coisas piores, enquanto eu escondo mais do que mostro e encolho os ombros e digo,
– o que é que eu tenho a ver com isso?,
ao mesmo tempo que cada vez mais me sinto como a minha prima Francisca, que há quase dois anos, na carta de suicídio, escreveu,
– não me mato por amor, mas pela falta dele, do amor
(o meu tio, o pai da Francisca, a ler a carta de suicídio para a família enquanto toda a família chorava a morte da Francisca-encharcada-em-comprimidos e eu a pensar,
– devias ter pedido a minha ajuda, Francisca,  devias ter pedido a minha ajuda para rever o texto, que merda de frase).
À tarde, hoje, depois das aulas, fui fazer compras. Eu cheio de sacos para o jantar, um em cada braço, a balançar pela rua, a tentar chegar à porta do prédio sem deixar que um deles me mande ao chão. E penso em ti enquanto atravesso a estrada, penso em ti ao meu lado, a atravessar a estrada com sacos debaixo do braço. Penso em ti ao meu lado tão rápido quanto desapareces e eu fico a olhar para a estrada sem carros porque não está lá ninguém.
Daqui a uma horas, ao balcão de um bar, o Bruno há-de perguntar-me,
– e tu, estás bem?,
e eu hei-de responder enquanto olho para lado nenhum,
– sim.
Entro no prédio com os sacos e a pensar em ti. Atrás de mim aparece um homem com a filha. Eu olho para trás. Olho para eles. Eu digo,
– boa tarde,
e o homem, que deve ser mais novo que eu, diz,
– boa tarde,
a miúda, que deve ter uns cinco ou seis anos não diz nada, apenas olha para mim e para os sacos. Eu estou com vontade de desaparecer, de me ver em casa sem vizinhos nem elevadores, de apenas imaginar um mundo onde caminhas descalça à minha frente pela relva e eu olho para ti e tu dizes,
– Mike,
e eu a olho para ti e mostro muito mais do que escondo, e tu olhas para mim.
Entretanto,
na vida real,
estou no elevador com sacos de um lado e de outro e uma miúda de cinco ou seis anos a olhar para mim fixamente e a dizer-me, a dizer-me nos olhos enquanto eu olhava para ela,
– porque é que estás tão triste?,
e o pai que deve ser mais novo que eu,
– deixa o senhor em paz,
e o pai para mim,
– desculpe,
e eu com um sorriso,
– não faz mal,
e a miúda outra vez quando voltei a olhar para ela,
– porque é que estás tão triste?

1 comentário:

  1. «(– devias ter pedido a minha ajuda, Francisca, devias ter pedido a minha ajuda para rever o texto, que merda de frase)»

    Tiago

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