Das muitas citações que poderia
fazer de Thomas Bernhard, talvez a que mais me agrade seja aquela que começa
por,
– a vida é maravilhosa,
e depois continua com,
– mas o mais maravilhoso é
pensar que ela tem um fim.
À tarde, enquanto estava a
traduzir uma peça
(não de Thomas Bernhard)
achei boa ideia limpar a
casa etc. Mudei lençóis, toalhas, tapetes. Arrumei e limpei a secretária, acho
que pela primeira vez desde o Verão. Quando acabei olhei em volta e pensei,
– está tudo na mesma.
Apeteceu-me ouvir Van Morrison
não sei porquê, e por isso pus o Van Morrison a tocar, e como já eram quase
oito da noite achei que era uma boa altura para começar a cozinhar, e por isso
comecei a cozinhar. Entretanto mandavam-me mensagens que alternavam entre o,
– boas entradas,
e o,
– que o próximo ano te
traga etc,
não respondi a nenhuma.
Toda a gente se queixa que
este ano foi uma merda e que o próximo há-de ser melhor, mas tenho a ideia de
que no ano passado disseram a mesma coisa e por isso não consigo perceber o
porquê de tantos sorrisos, de tanta festa. Quando ainda não era como sou
esforçava-me imenso. Gritava,
– dez, nove, oito,
mas havia sempre uma
altura, antes desse,
– sete, seis, cinco,
em que alguém me
perguntava,
– o que é que tens?,
e eu encolhia os ombros e
dizia,
– nada,
apenas encolhia os ombros
e dizia,
– nada, acho que não me
apetece estar aqui.
Pus a comida no forno e
achei que era uma boa altura para beber uma cerveja artesanal que me deram há
dias. Deram-me duas garrafas. Provei a primeira e achei que era muito boa. Estava
a pensar que devia guardar a segunda para uma ocasião especial enquanto punha a
mesa. Pus a mesa para duas pessoas, pus um lugar ao meu lado, não por achar que
fosses bater à porta de repente, a dizer,
– estou aqui,
não foi nada disso.
Não sei, apenas achei que
devia pôr um prato a mais e uma faca e um garfo a mais e um copo a mais e um
guardanapo a mais e puxar um pouco a cadeira para trás como se lá estivesses
sentada. Pensei,
– isto visto de fora deve
parecer o princípio de uma psicose, não posso contar isto a ninguém,
e agora estou a dizê-lo a
toda a gente.
Depois pensei,
– que se fodam as ocasiões
especiais,
e bebi a segunda cerveja
artesanal. O jantar estava pronto e abri o champagne. Foi caro, estava
bom, tal como o jantar. Olhei para o lado, para a cadeira, e pensei em ti, onde
estarias agora, tu que me tinhas dito de manhã que ainda não sabias aonde ias
passar o fim de ano, que estavas a considerar as opções. Depois percebi que
estava a jantar com um prato vazio e senti-me realmente sozinho.
Acabei de jantar e acabei o champagne. Arrumei as coisas. Lavei a louça, etc. Estava tudo arrumado. Bebi café e abri uma garrafa de whisky de 25 anos. Sentei-me no sofá e o Van Morrison continuava a cantar. O whisky tinha sido muito caro mas era muito bom. Bebi outro. Deviam ser umas onze horas por esta altura e eu comecei a ficar com sono. Peguei no Suetónio, na Vida dos 12 Césares, é o meu livro de cabeceira, gosto em particular do capítulo sobre Calígula e por isso comecei a ler o capítulo sobre Calígula. Servi-me outro whisky.
Acabei de jantar e acabei o champagne. Arrumei as coisas. Lavei a louça, etc. Estava tudo arrumado. Bebi café e abri uma garrafa de whisky de 25 anos. Sentei-me no sofá e o Van Morrison continuava a cantar. O whisky tinha sido muito caro mas era muito bom. Bebi outro. Deviam ser umas onze horas por esta altura e eu comecei a ficar com sono. Peguei no Suetónio, na Vida dos 12 Césares, é o meu livro de cabeceira, gosto em particular do capítulo sobre Calígula e por isso comecei a ler o capítulo sobre Calígula. Servi-me outro whisky.
A certa altura adormeci.
Foi um daqueles sonhos em
que não existe a consciência de que se está a sonhar, e por isso tudo parece real,
tudo parece a realidade mesmo que essa realidade seja estranha. Lembro-me que
estava a andar na rua, à noite, num sítio que não conheço, sem ninguém, uma
espécie de estrada vazia com árvores à volta. Apesar da situação não sentia
qualquer medo ou desconforto e mesmo quando comecei a ouvir tiros continuei a
olhar em volta com a mesma tranquilidade, a pensar,
– olha, tiros, muitos
tiros.
Nessa altura, no sonho,
percebi que não eram tiros que estava a ouvir, mas sim fogo-de-artifício e por
isso, muito naturalmente, olhei para cima para ver o fogo-de-artifício, mas o
céu estava negro, sem estrelas, sem nuvens, sem fogo-de-artifício, e enquanto
olhava para cima, no sonho, pensava,
– estou cego.
Acordei com essa sensação,
de que estava cego, e o sonho era tão real que houve aquele momento de dúvida e
de alívio, em que eu pensei,
– ainda bem que não estou
cego.
Tinha falhado a
meia-noite, tinha falhado o,
– quatro, três, dois,
levantei-me do sofá e fui
à varanda para ver o fogo-de-artifício, o fogo-de-artifício da realidade. Na
varanda ao lado estavam os vizinhos de copo na mão. Quis evitar brindes à
distância e sorrisos e,
– que este ano seja etc,
e por isso voltei para
dentro sem brindes nem sorrisos. Bebi outro whisky. Calei o Van Morrison e
carreguei no aleatório. Sentei-me à mesa outra vez, com o copo à minha frente e
a cadeira vazia ao meu lado. Entretanto chegavam mais mensagens e telefonemas,
não respondi a ninguém, não atendi ninguém. Apenas deixei que o telefone
tocasse até se calar. Fiquei assim um bocado, a ouvir o telefone a tocar com
mensagens e telefonemas.
Pela uma da manhã uma
amiga-que-não-posso-dizer-o-nome-porque-tem-namorado tocou à campainha,
disse,
– porque é que não atendes
o telefone?,
assim que abri a porta.
Ela sabia que eu ia passar
o fim de ano sozinho e acho que teve pena de mim.
Bebemos a outra garrafa de
champagne. Depois, enquanto ela se vestia, achei que era simpático da minha parte perguntar-lhe
se ela queria cá dormir, ela sorriu e disse que não, que eu sabia que ela não
podia cá dormir e que ela sabia que eu não queria que ela cá dormisse.
– Porque é que não vais
sair?,
disse ela,
– estás sempre ao balcão
de um bar e hoje estás em casa, vai divertir-te.
– Eu estou a divertir-me,
disse eu.
Depois ela disse,
– tenho de me ir embora,
e eu disse,
– eu sei, obrigado por
teres vindo.
Depois ela foi-se embora.
Depois bebi outro whisky.
E depois fui dormir. E não consegui dormir porque os meus vizinhos parece que
ainda estão a gritar,
– um, zero.
Têm um filho anormal que
está sempre a mexer os dedos das mãos e a gritar,
– paaaaaaaaaaai,
e,
– mããããããããããe.
Eu tenho pena dele. Mas
não consigo dormir porque ele continua aos gritos e por isso neste momento não
tenho muita pena dele. Neste momento tenho pena de mim.
E por isso saio de casa e
vou sair e encontro gente e desejo um bom ano a toda a gente e toda a gente me
deseja um bom ano e estamos a rir e a brindar e a contar histórias divertidas e
todos nós somos sorrisos e gargalhadas e muito barulho.
Mas às tantas, num
momento, desvio o olhar e deixo de rir e de falar muito alto, deixo de estar
ali e alguém me pergunta,
– o que é que tens?,
e eu respondo,
– nada,
eu respondo assim,
– nada.
Eu digo,
– estava a pensar numa
cadeira vazia.
Depois,
não sei,
acabei por vir para casa.
O final...
ResponderEliminarsuponho que seja um elogio. obrigado.
EliminarEu quero mesmo que escrevas um monólogo para mim, quero mesmo Miguel!
ResponderEliminarTiago
talvez daqui a um ano eu esteja melhor e consiga voltar a escrever.
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