domingo, 1 de janeiro de 2017

O ÚLTIMO DIA DO ANO

Das muitas citações que poderia fazer de Thomas Bernhard, talvez a que mais me agrade seja aquela que começa por,
– a vida é maravilhosa,
e depois continua com,
– mas o mais maravilhoso é pensar que ela tem um fim.
À tarde, enquanto estava a traduzir uma peça
(não de Thomas Bernhard)
achei boa ideia limpar a casa etc. Mudei lençóis, toalhas, tapetes. Arrumei e limpei a secretária, acho que pela primeira vez desde o Verão. Quando acabei olhei em volta e pensei,
– está tudo na mesma.
Apeteceu-me ouvir Van Morrison não sei porquê, e por isso pus o Van Morrison a tocar, e como já eram quase oito da noite achei que era uma boa altura para começar a cozinhar, e por isso comecei a cozinhar. Entretanto mandavam-me mensagens que alternavam entre o,
– boas entradas,
e o,
– que o próximo ano te traga etc,
não respondi a nenhuma.
Toda a gente se queixa que este ano foi uma merda e que o próximo há-de ser melhor, mas tenho a ideia de que no ano passado disseram a mesma coisa e por isso não consigo perceber o porquê de tantos sorrisos, de tanta festa. Quando ainda não era como sou esforçava-me imenso. Gritava,
– dez, nove, oito,
mas havia sempre uma altura, antes desse,
– sete, seis, cinco, 
em que alguém me perguntava,
– o que é que tens?,
e eu encolhia os ombros e dizia,
– nada,
apenas encolhia os ombros e dizia,
– nada, acho que não me apetece estar aqui.
Pus a comida no forno e achei que era uma boa altura para beber uma cerveja artesanal que me deram há dias. Deram-me duas garrafas. Provei a primeira e achei que era muito boa. Estava a pensar que devia guardar a segunda para uma ocasião especial enquanto punha a mesa. Pus a mesa para duas pessoas, pus um lugar ao meu lado, não por achar que fosses bater à porta de repente, a dizer,
– estou aqui,
não foi nada disso.
Não sei, apenas achei que devia pôr um prato a mais e uma faca e um garfo a mais e um copo a mais e um guardanapo a mais e puxar um pouco a cadeira para trás como se lá estivesses sentada. Pensei,
– isto visto de fora deve parecer o princípio de uma psicose, não posso contar isto a ninguém,
e agora estou a dizê-lo a toda a gente.
Depois pensei,
– que se fodam as ocasiões especiais,
e bebi a segunda cerveja artesanal. O jantar estava pronto e abri o champagne. Foi caro, estava bom, tal como o jantar. Olhei para o lado, para a cadeira, e pensei em ti, onde estarias agora, tu que me tinhas dito de manhã que ainda não sabias aonde ias passar o fim de ano, que estavas a considerar as opções. Depois percebi que estava a jantar com um prato vazio e senti-me realmente sozinho.
Acabei de jantar e acabei o champagne. Arrumei as coisas. Lavei a louça, etc. Estava tudo arrumado. Bebi café e abri uma garrafa de whisky de 25 anos. Sentei-me no sofá e o Van Morrison continuava a cantar. O whisky tinha sido muito caro mas era muito bom. Bebi outro. Deviam ser umas onze horas por esta altura e eu comecei a ficar com sono. Peguei no Suetónio, na Vida dos 12 Césares, é o meu livro de cabeceira, gosto em particular do capítulo sobre Calígula e por isso comecei a ler o capítulo sobre Calígula. Servi-me outro whisky.
A certa altura adormeci.
Foi um daqueles sonhos em que não existe a consciência de que se está a sonhar, e por isso tudo parece real, tudo parece a realidade mesmo que essa realidade seja estranha. Lembro-me que estava a andar na rua, à noite, num sítio que não conheço, sem ninguém, uma espécie de estrada vazia com árvores à volta. Apesar da situação não sentia qualquer medo ou desconforto e mesmo quando comecei a ouvir tiros continuei a olhar em volta com a mesma tranquilidade, a pensar,
– olha, tiros, muitos tiros.
Nessa altura, no sonho, percebi que não eram tiros que estava a ouvir, mas sim fogo-de-artifício e por isso, muito naturalmente, olhei para cima para ver o fogo-de-artifício, mas o céu estava negro, sem estrelas, sem nuvens, sem fogo-de-artifício, e enquanto olhava para cima, no sonho, pensava,
– estou cego.
Acordei com essa sensação, de que estava cego, e o sonho era tão real que houve aquele momento de dúvida e de alívio, em que eu pensei,
– ainda bem que não estou cego.
Tinha falhado a meia-noite, tinha falhado o,
– quatro, três, dois,
levantei-me do sofá e fui à varanda para ver o fogo-de-artifício, o fogo-de-artifício da realidade. Na varanda ao lado estavam os vizinhos de copo na mão. Quis evitar brindes à distância e sorrisos e,
– que este ano seja etc,
e por isso voltei para dentro sem brindes nem sorrisos. Bebi outro whisky. Calei o Van Morrison e carreguei no aleatório. Sentei-me à mesa outra vez, com o copo à minha frente e a cadeira vazia ao meu lado. Entretanto chegavam mais mensagens e telefonemas, não respondi a ninguém, não atendi ninguém. Apenas deixei que o telefone tocasse até se calar. Fiquei assim um bocado, a ouvir o telefone a tocar com mensagens e telefonemas.
Pela uma da manhã uma amiga-que-não-posso-dizer-o-nome-porque-tem-namorado tocou à campainha, disse,
– porque é que não atendes o telefone?,
assim que abri a porta.
Ela sabia que eu ia passar o fim de ano sozinho e acho que teve pena de mim.
Bebemos a outra garrafa de champagne. Depois, enquanto ela se vestia, achei que era simpático da minha parte perguntar-lhe se ela queria cá dormir, ela sorriu e disse que não, que eu sabia que ela não podia cá dormir e que ela sabia que eu não queria que ela cá dormisse.
– Porque é que não vais sair?,
 disse ela,
– estás sempre ao balcão de um bar e hoje estás em casa, vai divertir-te.
– Eu estou a divertir-me,
disse eu.
Depois ela disse,
– tenho de me ir embora,
e eu disse,
– eu sei, obrigado por teres vindo.
Depois ela foi-se embora.
Depois bebi outro whisky. E depois fui dormir. E não consegui dormir porque os meus vizinhos parece que ainda estão a gritar,
– um, zero.
Têm um filho anormal que está sempre a mexer os dedos das mãos e a gritar,
– paaaaaaaaaaai,
e,
– mããããããããããe.
Eu tenho pena dele. Mas não consigo dormir porque ele continua aos gritos e por isso neste momento não tenho muita pena dele. Neste momento tenho pena de mim.
E por isso saio de casa e vou sair e encontro gente e desejo um bom ano a toda a gente e toda a gente me deseja um bom ano e estamos a rir e a brindar e a contar histórias divertidas e todos nós somos sorrisos e gargalhadas e muito barulho.
Mas às tantas, num momento, desvio o olhar e deixo de rir e de falar muito alto, deixo de estar ali e alguém me pergunta,
– o que é que tens?,
e eu respondo,
– nada,
eu respondo assim,
– nada.
Eu digo,
– estava a pensar numa cadeira vazia.
Depois,
não sei,
acabei por vir para casa.  

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