E ele continuou,
mas ainda assim, como
qualquer mau jogador de póquer que leu Kipling, conseguiu levantar-se da mesa
sem pestanejar, sem insultar deus, o destino ou o universo. Apenas se dirigiu
para a porta sem apressar o passo. Disse,
– boa noite,
ao segurança e, cá fora,
por causa do vento, lembrou-se de Cesariny, daquela história de levantar a gola
de peludo (ou de veludo?). Não se riu de nada, nem sequer dele próprio, não se
riu de coisa nenhuma, apenas procurou o carro e pensou,
– pelo menos tenho gasolina
para voltar para casa.
Pôs as mãos no volante
antes de rodar a chave e ouviu uma voz dentro da cabeça que lhe disse,
– bem, agora sim, perdeste
tudo,
mas ainda tinha vinte
euros na carteira
(isto não foi há muito
tempo).
Foi até um bar onde o
conheciam, este mesmo bar onde estamos agora, e sentou-se ao balcão como nós
estamos agora sentados, até acho que ele estava sentado exactamente nesse lugar
e pediu um whisky como acabámos de pedir. Se pedisse para pagar noutro dia o barman
teria dito,
– sabe que aqui está
sempre à vontade,
mas não pediu para pagar
noutro dia, pediu mais três whiskys e no final pagou a conta com os vinte euros
que lhe restavam na carteira.
Durante esse tempo não
falou com ninguém nem olhou para ninguém. Apenas se manteve quieto, no canto do
balcão, a olhar para o whisky e, por vezes, para o relógio. Não acho que
estivesse a pensar no dinheiro que perdeu ou na jogada em que perdeu tudo, não
acho que estivesse a fazer contas ou a rever a última carta que saiu, a dama
que deu a sequência ao inglês contra o par de ases que tinha de mão. Quando se
tem um par de ases, amigo, tem de se apostar tudo, mas nem sempre se ganha, às
vezes perde-se para uma sequência que sai com a dama na última carta.
(Sabe, nesta coisa das
histórias, das histórias que se contam, ninguém se lembra de quem não paga a
conta. E por isso ele pagou o que devia e ficou sem dinheiro, ficou sem nada.)
Apesar dos quatro whiskys
levantou-se sem cambalear e caminhou para a porta. Lá fora estava um vento
terrível, chovia também, tal como hoje.
Claro que ninguém sabia
disto na altura,
diz ele,
ninguém sabia que ele
tinha perdido o dinheiro todo, que a mulher o tinha deixado, que já não tinha
emprego. Era apenas alguém no fim da noite, a beber whisky e a olhar
para o relógio. Podia ser um qualquer, podia ser qualquer um de nós quando
parou à porta e se virou para trás e nos disse,
– meus senhores, boa noite
a todos.
E eu estou sentado e estou
a ouvir esta história, estou a tentar ouvir esta história, a maior parte das
vezes aceno com a cabeça, mas o velho é surdo e de cada vez que eu digo,
– não me diga,
ele diz,
– hã?
e continua a história como
se eu não tivesse dito nada.
Há uma miúda que não tira
os olhos de mim. Olho para os olhos dela e penso,
– vou levar-te para a
cama,
mas depois penso em ti, no
que estarás a fazer, com quem poderás estar. E por isso acendo um cigarro e
bebo o que resta do copo.
Ele pergunta se quero outro. Eu digo que sim e
o Rafael serve-me mais um whisky.
– E então, o que é que lhe
aconteceu?,
pergunto eu,
– hã?
diz ele.
– O que é que lhe
aconteceu, ao homem do casino, atirou-se da Boca do Inferno ou qualquer coisa
parecida?
(Eu continuo a olhar para
a miúda e ela para mim.)
E depois ele diz qualquer
coisa que eu não ouço,
e eu,
– hã?